Outra Reflexão sobre Free Guy (Parte II): Protagonismo e Realidade

Outra Reflexão sobre Free Guy (Parte II): Protagonismo e Realidade

Olá, marujos! Hoje, teremos outra reflexão sobre Free Guy. Nesse filme, acompanhamos um personagem de videogame o qual acha que é alguém real. Se não bastasse isso, ele ainda tenta conquistar o coração de uma jogadora, não sabendo que está interagindo com o avatar dela. Nessa outra reflexão, irei explorar a consciência de protagonismo sobre as próprias ações; o conceito de realidade proposto pelo filme; e também fazer uma comparação com o filme O Show de Truman. Atenção, pois teremos alguns spoilers. Vamos lá!

Sobre Free Guy

Free Guy: Assumindo o Controle (nome completo do filme no Brasil) estreou em 2021 e é um filme estadunidense do gênero comédia. Futuramente, o filme estará na Disney+ ou no Star+ já que ele pertence a Disney.

Para lerem um resumo completo da história do filme, acesse: Reflexão sobre Free Guy (Parte I): Naturalização da Violência.

Outra Reflexão sobre Free Guy: Chega de ser NPC!

Para quem não está familiarizado com nomenclatura de videogame, NPC é a sigla para non-player character, que traduzido dá “personagem não jogável”.

Em outras palavras, NPC são os personagens que interagem ou compõem o cenário de um jogo, mas que não pode ser controlado pelo jogador. O NPC é controlado pela inteligência artificial do jogo.

Ou seja, os NPCs são pré-programados. Logo, todas as suas ações não são livres. Eles agem segundo uma programação pré-determinada para eles. 

Se olharmos para o filme, veremos como alguns personagens sempre usam a mesma roupa, fazem o mesmo trajeto, tomam o mesmo tipo de café, falam as mesmas frases de efeito.

O interessante do filme é que, em um primeiro momento, os NPCs não sabiam que era NPCs. Por isso, eles agiam sempre da mesma forma e não se importavam com isso. Eles tinham uma rotina bem padronizada (assim como nós costumamos ter) e estava tudo bem.

As coisas começam a mudar quando Guy (Ryan Reynolds) encontra o avatar (representação de um jogador real dentro do jogo) de uma jogadora e se apaixona. Isso faz com que ele saia do seu papel pré-programado e comece a causar uma certa confusão dentro do jogo.

A atitude não programada de Guy foi tão inesperada que os desenvolvedores achavam que Guy era um jogador o qual estava usando a skin (pele / aparência) do NPC, e não o próprio NPC agindo por conta própria, fora da programação.

Nós saberemos, futuramente, que Guy pode agir desse jeito porque o jogo foi criado em cima de uma Game Engine (motor do jogo, o programa fundamental que sustenta todo um jogo) que permitia aos NPCs desenvolver livremente suas características, como se fossem pessoas reais.

Depois de algumas aventuras, Guy terá um choque quando descobrir que ele é um programa de computador. Em um primeiro momento, ele terá uma “crise existencial” pois todo seu esforço parecerá inútil. Porém, depois, ele compreenderá que possui sim uma liberdade, que pode sim ser protagonista da sua história e incentivará os demais NPCs a fazerem o mesmo.

Essa atitude de Guy está de acordo com a noção de liberdade em Heidegger. Para esse filósofo, todos nós temos algumas predeterminações em nossas vidas tais como época e local de nascimento, núcleo familiar e sua condição financeira, nossa genética. Esses elementos não são escolhidos por nós, eles são nos dados como condicionantes. Contudo, diferente dos outros seres que vivem de acordo com esses condicionamentos, o ser humano pode se projetar no futuro, transcendendo suas predeterminações e dando um significado único para a sua vida.

No contexto do filme, Guy nunca poderia deixar de ser um programa de computador e se tornar um ser humano. Mas ele poderia, dentro das condições de um programa, ser protagonista da sua história e ignorar suas pré-configurações de NPC do jogo Free City, lutando para destruir esse jogo e encontrar o código escondido que revelava o jogo por trás do jogo.

Quando Guy percebe isso, ele também incita os outros NPCs a fazerem o mesmo. Até então, todos estavam presos nos seus personagens. Mas agora, eles entenderam que poderiam viver uma vida livre, em que as escolhas de ação seriam deles mesmos e não da programação do jogo.

O que o filme quer nos mostrar é: não existe uma liberdade plena porque algumas coisas são necessariamente pré-configuradas em nós. Porém, isso não quer dizer que somos obrigados a executar um determinado papel de forma acrítica. Nós podemos (e devemos) ser protagonistas de nossas vidas.

Por isso, pense o que você gostaria de ser ou fazer. Veja quais são as ferramentas que estão a sua disposição hoje e comece a trabalhar com elas. Planeje aquilo que você precisa para ir além e junte recursos para adquirir o que está faltando. Para cada pessoa, o processo é diferente. Para uns, é mais rápido e fácil. Para outros, é mais demorado e difícil. O filme mostra isso quando apresenta o personagem que fica sempre com as mãos levantadas e não consegue baixá-las. Porém, difícil é diferente de impossível.

Por fim, se junte com pessoas que também querem ser protagonistas de suas vidas. Dificilmente você irá longe se as pessoas com quem você convive estão satisfeitas com suas vidas pré-configuradas. Você precisa se juntar com pessoas que querem ir além do que são e possuem atualmente.

Outra Reflexão sobre Free Guy: E daí se isso não for Real?

No mesmo momento da crise existencial de Guy, quando ele descobre que faz parte de um jogo, Guy também questiona a motivação das suas ações. Se tudo é artificial, porque me importar, porque me preocupar em agir de um jeito ou de outro, porque fazer planos e traçar metas já que nada na minha vida é real.

Nessa hora, ele vai procurar a ajuda do seu amigo Buddy (Lil Rel Howery). Antes de contar tudo o que descobriu, Guy questiona Buddy sobre o que ele faria se descobrisse que não é real. Buddy responde de forma simples com um “e daí?” surpreendendo Guy e todos nós.

O ser humano tem uma necessidade insaciável de descobrir a verdade, de sondar a realidade e extrair todas as informações dela. Para nós, conhecer tudo nos dá uma sensação de controle sobre nós mesmos e nossas vidas. Se sei de tudo, se entendo como tudo funciona, nunca serei surpreendido.

De modo geral, os filósofos se questionaram sobre o conceito de realidade e sobre como compreendê-la. Porém, praticamente nenhum deles questionou se a vida deles era real, se eles de fato eram reais! Provavelmente, quem mais explorou essa tese foi Descartes e ele mesmo chegou à conclusão que tudo era real!

Até então, o ser humano ainda estava crente que vivia uma realidade, no máximo questionando sua capacidade de desvendar essa realidade. Contudo, os avanços tecnológicos, que estão nos permitindo criar sistemas complexos de computador e realidades virtuais levantou um novo questionamento: e se aquilo que nós chamamos de realidade não é o real. E se nós também não somos um programa de computador ou vivemos em uma Matrix?

A resposta que o filme nos dá é simples: e daí? E daí se isso não for real? E daí se nossas vidas não forem reais? E daí se nós não formos reais? Só uma coisa importa: a realidade do momento!

Dessa forma, o filme quer tirar de nós uma preocupação metafísica que só nos angustia e que, em última análise, não muda em nada nossas vidas. 

Mesmo que tudo isso que vivemos, sentimos e somos não seja real tal como concebemos o conceito de realidade, esse momento que vivemos é real! Você estar lendo esse texto agora é real para você; quando eu escrevi esse mesmo texto, esse momento foi real para mim. Nós dedicamos um tempo de nossas existências para esses momentos, nós deixamos de fazer outras coisas para fazer isso, nós envolvemos sentimos nesses momentos, nós temos algum grau de consciência que estamos fazendo isso (nosso cérebro está sentindo esse momento).

Tudo isso, segundo o filme, já é razão suficiente para valer a pena esse momento como se ele fosse real porque ele é real para nós que o estamos vivendo. Na hora, é real para nós. É isso que importa.

Sendo assim, fica para nós a compreensão de que, apesar de tudo o que possa vir a ser descoberto, que possamos aproveitar o momento, o agora da situação, porque ele é o nosso real. Não adianta nada sofrer sobre o que é realidade se não curtirmos aquilo que a vida está nos proporcionando agora. Carpe Diem! Curta o momento!

Um Novo Show de Truman?

Muitas pessoas comparam Free Guy com o filme O Show de Truman. A comparação é justa e válida, especialmente na dinâmica do personagem principal: um homem que vivia sua vida cotidiana tranquilamente até que algo o faz desconfiar da sua realidade e, com isso, o motiva a querer saber a verdade enfrentando várias dificuldades no processo.

Porém, vale aqui destacar alguns pontos que fazem cada filme independente e cumpridor de um papel específico:

1. Em O Show de Truman, Truman mora em um gigantesco estúdio de TV. É uma cidade fictícia, mas ainda está dentro da realidade objetiva dos seres humanos. Em nenhum momento Truman questiona se ele é real. Ele questiona se as situações que ele vive, as interações que ele tem com as pessoas são reais. E, em O Show de Truman, não eram porque todos eram atores.  Já no filme Free Guy, todos são um programa de computador e a relação que existia entre os NPCs era uma relação sincera. Todos se gostavam verdadeiramente e isso fica demonstrado no final, quando eles começam a viver no programa original, que lhes dava liberdade de ação.

Dessa forma, ambos os filmes questionam a realidade, porém um foca na realidade das interações enquanto o outro foca mais na realidade concreta.

2. Em O Show de Truman, o personagem decide pelo protagonismo de sua vida apenas. E isso é compreensível já que apenas ele era o enganado, sendo todos os outros atores contratados. Já em Free Guy, o protagonismo era coletivo. Quando eles percebem o que está acontecendo, todos se juntam para ir contra o controle.

Dessa forma, ambos os filmes levantam a discussão sobre o protagonismo sobre a própria vida, porém um foco no protagonismo individual e o outro em um protagonismo coletivista.

Como sugestão, leiam: uma reflexão sobre O Show de Truman: quem somos nós e quem queremos ser.

Conclusão

Com isso, fechamos essa outra reflexão sobre o filme Free Guy. Nessa segunda parte, percebemos o quanto é importante buscarmos ser protagonistas de nossas vidas, entendendo que podemos e devemos dar sentido para nossas vidas. Também vimos que realidade é o momento que vivemos, e que não vale a pena ficar perdendo tempo questionando a realidade objetiva de nossas existências.

E aí? Curtiu essa outra reflexão sobre o filme Free Guy? Compartilha! Tem algo a acrescentar? Comenta! Alguma sugestão para outras reflexões? Entra em contato!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.