Reflexão sobre Upload: O Dilema da Morte

Reflexão sobre Upload: O Dilema da Morte

Olá, marujos! Hoje vamos fazer uma reflexão sobre a série Upload. Essa é uma série futurista que traz de maneira cômica um importante debate sobre um tema polêmico em todos os seus aspectos: a morte. Aproveitando as questões levantadas na série, e o auxílio da filosofia, vamos também aqui falar desse assunto. Esse artigo não trará spoilers da trama principal, então podem lê-lo mesmo sem ver a série. Vamos lá!

Sobre Upload

Upload é uma série original da Amazon Prime Video. Podemos classificá-la nos gêneros comédia e ficção científica.

A série se passa nos EUA no ano de 2033. A tecnologia é tão avançada que os carros já são automáticos, o smartphone agora é uma pulseira que projeta a imagem no ar ou no braço, você pode imprimir a sua própria comida e, o mais importante, descobriu-se uma forma de “vida eterna”, em que a sua consciência faz um upload (daí o nome da série) para uma realidade virtual e você pode curtir uma vida sossegada e ainda interagir com as pessoas que estão vivas.

Acompanhamos a vida (e pós vida) de Nathan Brown (Robbie Amell), um jovem programador que sofre um acidente de carro e, devido ao alto risco de morrer em uma cirurgia de emergência, prefere fazer o upload da sua consciência para Lake View, a mais cara e refinada realidade virtual do pós vida. O problema é que ele é pobre e só está lá por causa da sua rica namora Ingrid (Ingrid Kannerman).

Os primeiros dias nessa nova realidade são difíceis, e os “hóspedes” do hotel Lake View possuem a ajuda de um “anjo”, um programador que os acompanham nesse primeiro momento e depois servem de intermediários entre os uploads e o sistema, atendendo seus desejos e tirando dúvidas. O anjo de Nathan é Nora Antony (Andy Allo), uma simpática programadora que está desesperada em melhorar sua média de avaliações para conseguir um grande desconto no plano de pós vida para o seu pai, que está doente.

Infelizmente, o pós vida de Nathan não é um paraíso como ele imaginava. Ele terá que lidar com conflitantes sentimentos para com sua namorada e sua anjo, e também uma suspeita de sabotagem no carro (que provocou o acidente fatal). Se ficaram curiosos para saber o que vai acontecer, vejam a série depois que acabarem de ler esse artigo! kkk

Reflexão sobre Upload: O que Há Após a Morte?

O universo da série trata a questão do upload como algo muito natural. Como é um serviço pago, nem todos conseguem bancar e perdem a oportunidade de colocarem seus parentes nessa condição. Mas a maioria das pessoas considera como algo normal fazer o upload para alguma dessas realidades virtuais pós vida (sim, são várias empresas que oferecem esse serviço, com as mais variadas gamas de produtos e valores).

Os maiores questionamentos sobre esse pós vida virtual, se é certo ou errado, ou se existe um céu real para as almas, e como ficaria no caso de haver céu e a pessoa ter feito upload ocorrem entre Nora e seu pai Dave Antony (Chris Williams). Nora não só trabalha como acredita no projeto de upload. Ela decidiu trabalhar em Lake View para conseguir fazer o upload de seu pai, que está doente. Entretanto, Dave não quer fazer o upload. O motivo é a sua esposa (e mãe de Nora). A senhora Antony morreu a algum tempo e não conseguiram fazer o upload dela por falta de dinheiro. Dessa forma, apenas estarão em Lake View Dave e Nora, mas não a senhora Antony.

Dave acredita que não deve fazer o upload para poder encontrar sua esposa no céu. Para ele, fazer o upload é abandonar a esposa sozinha na eternidade. Já Nora não acredita no céu, e não quer perder seu pai também, assim como perdeu sua mãe. Para ela, Dave não vai para lugar nenhum se não fizer o upload, apenas irá desaparecer. Logo, não existem dúvidas de que o melhor é ele aceitar ir para Lake View.

Percebemos, assim, que a grande questão dos dois é sobre a existência ou não de uma eternidade após a morte. Com o auxílio da filosofia, podemos colocar aqui uma disputa entre as teorias da existência do pós vida e eternidade da alma humana e aqueles que acreditam que tudo acaba com a vida.

Sócrates, Platão e os filósofos cristão (como Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino e Blaise Pascal) são exemplos de teorias que defendem a existência da vida eterna após a morte. Aristóteles, Epicuro, Nietzsche, Heidegger e Sartre são exemplos de filósofos que defendem o fim de toda a existência da pessoa com a sua morte. Apesar de suas teorias serem interessantes, não existe uma prova consistente, mesmo que apenas racional, para podermos fechar a questão e definir um lado vencedor.

Na sua maioria, as teorias filosóficas partem de um pressuposto dogmático com relação ao assunto (existe ou não existe vida após a morte, existe ou não existe alma imortal) e, baseando-se nisso, eles discursam sobre como devemos encarar a morte (e, consequentemente, a vida). Vejamos algumas teorias:

Sócrates vai defender uma vida austera, sem prazeres sensíveis, e uma busca constante pela sabedoria, porque a vida após a morte é suprassensível (ou seja, além da sensibilidade) e somente nos restará o cuidado intelectual. Platão concordará com seu mestre Sócrates, mas acrescentará a sua teoria da reminiscência, que propõe a reencarnação da alma. Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino confiarão na vida eterna inspirados nas suas provas de que o Deus cristão existe e, consequentemente, naquilo que ele disse através de seus profetas e seu filho (presente na Bíblia). Pascal vai nos dizer, através do seu Argumento da Aposta, que não dá para provar que o céu existe, mas é melhor viver acreditando que tanto ele quanto o Inferno podem existir.

Aristóteles até defende a existência de uma alma, mas ela é material e chega ao fim junto com o corpo humano, ao morrer. Epicuro vai dizer que a morte não nos afeta porque quando morremos não sentimos mais nada; logo, a morte é só o nome que damos para o fim da vida e devemos aproveitar o tempo que temos vivos. De modo semelhante, Nietzsche, Heidegger e Sartre considerarão a morte apenas como o final da vida e defenderão que devemos nos preocupar em dar um sentido para a vida na própria vida e não vivermos em uma preparação para algo que viria após ela.

Voltando para a série, acredito que o dilema poderia ser resolvido de uma forma prática, apesar de polêmica: se existe alma, ela se desligará do corpo com a morte, que ocorre após o upload. Logo, se a alma existe, ela existirá paralelamente ao upload, que no fundo é um programa que consegue escanear todas as suas memórias e fazer um avatar virtual seu que continua tomando decisões. Sendo assim, podemos dizer que Dave estará em dois lugares ao mesmo tempo: ele terá a sua alma ao lado de sua esposa e terá o seu avatar ao lado de sua filha.

Essa solução é polêmica porque defenderíamos uma dupla existência, mas não era esse o problema original. Se o “eu” verdadeiro é a alma e o avatar, ou somente a alma (e o avatar é um “eu” falso), isso não invalida a possibilidade de se estar em dois lugares ao mesmo tempo. Dave pode agradar tanto sua filha quanto sua esposa.

Reflexão sobre Upload: O Direito sobre a Vida e a Morte

Outro tema polêmico da série (mais polêmico para a gente do que para eles), que provavelmente será mais explorado nas temporadas futuras, é o modo como o upload é feito e os projetos de download que existem.

Na série, o upload tem que ser feito com a pessoa viva. Um máquina faz o escaneamento das memórias e da consciência da pessoa. Mas no final do processo, a pessoa morre. Dessa forma, nós temos aqui um tipo de eutanásia porque a pessoa deliberadamente tira a sua vida real para criar o seu avatar virtual.

Além disso, também são mostrados experimentos preliminares que tentam fazer o download dessa consciência em um corpo (não fica claro se é o mesmo corpo agora curado ou se é um novo corpo saudável). Aparentemente, a pessoa que “voltou” era ela mesma.

A questão que nos fica é o direito sobre a vida e a morte, no caso tirar a sua vida (criando a sua morte) e recriar a sua vida (tirando a sua morte). A grande polêmica, quando não envolvemos Deus, geralmente está no limite de nossa liberdade. Aqueles que são contra a eutanásia vão dizer que o seu direito de viver é superior à sua liberdade de tirar a própria vida, especialmente pelo fato de que não existe arrependimento (no sentido de desistir) para esse ato. Aqueles que são contra a ressuscitação acreditam que aquele que volta não é mais a mesma pessoa, que a original se perderia com a morte.

Contudo, no contexto da série, devido à possibilidade de ser preservar o “eu” de forma virtual, tirar a sua vida não significa de fato morrer (no sentido de que tudo acabou) e voltar a viver nada mais é do que sair do virtual e voltar para o real. Logo, podemos dizer que aquela sociedade não sente um dilema ético de certo e errado para essas decisões, porque os problemas fundamentais não existiriam em si.

Reflexão sobre Upload: Conclusão

Ao final dessa reflexão sobre Upload, percebemos que a maioria dos questionamentos metafísicos (o que existe ou não existe após a morte) e éticos (é certo ou errado tirar e recriar a sua vida) terminam quando a ciência vem trazer uma solução prática para o problema. Se observarmos, é mais ou menos isso que ocorreu em nossa sociedade quando as ciências modernas se consolidaram: a filosofia foi colocada em segundo plano. Contudo, as perguntas não deixam de existir porque as soluções científicas não são de fato soluções, mas sim, artifícios criados pelo ser humano para fugir dos seus dilemas existenciais. Dessa forma, mesmo que a proposta de Upload um dia se torne real, ainda assim as questões filosóficas continuarão porque, de um jeito ou de outro, a natureza humana ainda será a mesma e a morte vai chegar (mesmo que possamos disfarçá-la). “Diz Cícero que filosofar não é outra coisa senão se preparar para a morte” (Michel de Montaigne).

E aí? o que achou dessa reflexão sobre Upload? Deixa sua opinião aí nos comentários! Gostou dessa reflexão sobre Upload ou conhece alguém que gostou da série? Compartilha esse artigo! Quer sugerir outras séries ou temas filosóficos para reflexão? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Referências

ARANHA, Maria Lúcia Arruda. Filosofar com textos: temas e história da Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2016.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.