Reflexão sobre Convergente: entre Defeitos e Memórias

Reflexão sobre Convergente: entre Defeitos e Memórias

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o livro Convergente. Para quem não sabe do que estou falando, Convergente é o final de uma trilogia que começou com Divergente (que possui, inclusive, uma reflexão nerd sobre o filme aqui no blog). Destaco que falarei do livro e não do filme (o filme é bem diferente do livro e ficou sem o final definitivo devido ao cancelamento do que seria Convergente – parte 2). Resolvi fazer essa reflexão sobre Convergente porque ele aborda temas muito interessantes e diferentes dos livros / filmes anteriores. Esse artigo estará cheio de spoilers, então só continuem se vocês já leram o livro ou não se importam. Vamos lá!

Sobre Convergente (COM Spoilers)

Convergente é o livro que encerra a trilogia da saga Divergente. Foi escrito por Veronica Roth e lançado em 2013 nos Estados Unidos (2014 no Brasil e Portugal).

Recordando a história de Divergente e Insurgente

No livro Divergente descobrimos que existe uma cidade (Chicago) que é dividida em facções. Facções são grupos de vivência e profissões, que estão relacionadas a qualidades e aptidões de cada um. Todos nascem em uma facção, mas são obrigados, quando adolescentes, a escolher se querem permanecer ou mudar. Para isso, eles fazem um teste vocacional que ajuda a pessoa a decidir.

Acompanhamos a história de Beatris Prior, que nasce na abnegação (os humildes, que fazem funções de administração pública e social), mas decide mudar para a audácia (os corajosos, que fazem as funções militares e de guarda). Vemos todo o seu treinamento e amadurecimento. Também descobrimos que ela é divergente, ou seja, ela tem aptidão para várias facções.

Já para o final do livro, é revelado que a Erudição (facção dos inteligentes, que fazem a função de cientistas) desenvolveu um soro que controla a mente das pessoas. Com isso, eles controlam os membros da audácia e os fazem matar os membros da abnegação para tomarem o controle da cidade. O soro não funciona nos divergentes e, por isso, eles são uma ameaça. Tris (novo nome de Beatris) se junta ao seu namorado Quatro (também divergente) e desarmam a simulação de controle. Porém, agora eles são procurados.

No livro Insurgente, Tris e Quatro se unem aos sem facções (pessoas que foram expulsas das suas facções porque não se adaptaram ao rigor imposto por elas e que vivem à margem da sociedade) para derrubarem a Erudição + Audácia e acabarem com o golpe. Contudo, acontece que os sem facções, liderados por Evelyn Johnson (mãe de Quatro), dão eles mesmos um golpe e tomam o controle da cidade, acabando com o sistema de facções. No final do livro, uma mensagem secreta é revelada e todos descobrem que eles são um experimento governamental e que existe todo um mundo fora da cidade.

O Fim da Trilogia

Tris, Quatro e mais alguns aliados estão presos porque foram traídos pelos sem facções. Eles são julgados e liberados porque fingiram apoiar o novo governo.

Logo em seguida, eles descobrem que existe um grupo rebelde denominado Leais, que defendem a manutenção das facções. Como estratégia para derrubar Evelyn Johnson, alguns Leais decidem ficar na cidade para uma ofensiva enquanto um grupo menor decide sair da cidade e descobrir o que existe lá fora de fato. Tris e Quatro estão no grupo que decide sair.

Já fora, eles descobrem que existe um mundo “normal” para além de Chicago. É confirmado que Chicago é um experimento e eles conhecem a unidade que controla o experimento. Lá, lhes é explicado o motivo disso tudo:

A muito tempo atrás, a ciência descobriu quais são os genes responsáveis pelos problemas de comportamento humano, que supostamente seriam os responsáveis por todas as atitudes antiéticas e criminosas. Como forma de corrigir esse problema e gerar seres humanos “perfeitos”, iniciou-se um processo de retirada desses genes na esperança de que surgisse uma sociedade perfeita. Só que não funcionou. A ausência desses genes criou um desequilíbrio genético que deixaram as pessoas ainda piores e o desastre foi tomando escala até se tornar uma guerra mundial entre pessoas geneticamente modificadas e pessoas não-geneticamente modificadas.

Arrependidos de terem mexido com os genes das pessoas, foi criado o Departamento de Auxílio Genético. Esse departamento conduziu diversos experimentos sociais, criando várias cidades dentro dos EUA que deveriam funcionar como grupos de controle e criação de novos seres humanos que voltassem a nascer com os genes naturais, sem a alteração científica provocada. As pessoas apegadas às facções seriam do grupo dos geneticamente modificados e as pessoas divergentes seriam as geneticamente puras.

Assim, descobrimos que existe uma grande divisão social no mundo: os GDs são os Geneticamente Defeituosos (pessoas que nasceram sem alguns dos genes considerados antigamente ruins); e os GPs são os Geneticamente Puros (pessoas que nasceram com todos os genes, sem nenhuma alteração).

Quatro descobre que não é de fato divergente (GP), ele só era resistente mesmo aos soros. Isso o afasta um pouco de Tris, que de fato é Pura. Esse afastamento o faz se aproximar de Nita, uma GD que trabalha no departamento. Ela o convence a fazer uma rebelião e derrubar o departamento porque o departamento divulga a história que todo o mal do mundo é resultado dos GDs, só que na verdade já existiram guerras antes das primeiras modificações. Ou seja, a questão genética não aumenta nem diminui o mal no mundo. Quatro aceita participar do levante, mas eles fracassam.

Enquanto isso, em Chicago, está para acontecer uma grande batalha entre os Leais e os sem facções. Para evitar essa guerra sangrenta, que vai acabar matando todos os GPs que surgiram na cidade, o Departamento decide jogar nos grupos um soro da memória, que vai apagar a memória de todos e fazê-los voltar a sociedade do zero, como se eles tivessem se encontrado juntos pela primeira vez.

Tris descobre o plano e é contra porque não concorda com essa forma de “paz”. Ao mesmo tempo, ela descobre o segredo do departamento (que a questão genética não aumenta nem diminui o mal no mundo) e se volta contra eles. Só que sua tática de enfrentamento é diferente: ela decide usar o soro da memória para apagar a memória dos membros do departamento. Assim, eles não lembrarão mais do porquê criaram o experimento e parariam de difundir a mentira da briga genética.

Enquanto isso, Quatro vai para a cidade evitar a guerra e contar toda a verdade. Ele propõe uma trégua e a liberdade para cada um viver como bem entender.

O plano dá certo, mas Tris morre no processo. Chicago agora é uma cidade aberta, em que pessoas podem se juntar às facções ou viverem sem facções. Não existe mais disputa entre GDs e GPs.

Reflexão sobre Convergente: Geneticamente Puros x Geneticamente Defeituosos

Uma das coisas que mais me surpreendeu nesse livro foi o fato dele tratar como geneticamente defeituosos exatamente as pessoas que tiveram modificações genéticas. Se olharmos os avanços científicos dessa área, aquilo que mais vemos é a criação de tecnologias que permitem a manipulação genética para tirar os supostos “defeitos” do genoma humano.

Hoje, você pode manipular genes para evitar doenças, para selecionar cor dos olhos… Espera-se no futuro que você possa criar geneticamente um ser humano “perfeito” com todas as características que os pais quiserem. Isso é retratado no filme GATTACA – A Experiência Genética (que também tem uma reflexão nerd).

O problema trazido pelo livro Convergente é que as manipulações genéticas terão um efeito contrário. Em vez de criarem uma população perfeita, vão criar uma população defeituosa. Isso significa que atualmente os nossos genes são perfeitos. A combinação genética que temos é aquilo do que precisamos. É o famoso “se melhorar estraga”.

Nós temos mania de achar defeito em tudo, inclusive em nós mesmos. Nosso corpo não é bom, nossa altura não é boa, nossa inteligência não é boa, nossa disposição física não é boa, etc. A questão trazido pelo livro é: o que é bom? O que significa ser perfeito?

A conclusão chegada é que a perfeição está na pluralidade. Na diferença. Na divergência. Isso se refere a tudo, não só biologicamente falando, mas também nos aspectos psicológicos e sociais. O erro apontado pelo livro foi querermos criar o ser humano perfeito, sendo que já éramos perfeitos.

Hoje, pode parecer muito ruim ter pessoas “inteligentes” e outras desinteressadas do conhecimento acadêmico. Só que se todos fossem superinteressados em conhecimentos acadêmicos, toda as pessoas ficariam trancadas em casa ou laboratórios pesquisando e ninguém iria para o campo cultivar alimentos.

Se todos fossem audaciosos e dispostos a arriscar, teríamos sérios problemas de violência e crises porque ninguém pararia para pensar antes de agir. Por isso, é importante que tenham pessoas mais dispostas ao risco e outras mais “covardes”.

É errado mentir? Depende! Já pensou se todos contassem a verdade a qualquer momento? Quantos problemas não poderiam surgir por alguém falar “na cara” uma verdade em vez de ter aquela capacidade de omitir ou contar uma meia-verdade para não magoar a pessoa.

Ah! Mas ninguém quer assassinos! Realmente, mas o livro mostrou que não existe um gene assassino. Sendo assim, esse tipo de crime continua ocorrendo com ou sem manipulação genética.

Resumidamente, o livro mostra que a disposição para o mal não é um problema genético, não existindo, assim, cura. O problema do mal é ético e pode afetar qualquer pessoa, independentemente do gene, e está muito atrelado ao pré-conceito: você age mal contra alguém porque sente que ela é inferior a você. Lembro de Santo Agostinho que dizia “o mal é a ausência de bem”.

Outra coisa que percebo é que o livro tende a uma ética aristotélica, vendo o sucesso da ação na vida equilibrada. É na combinação dos genes naturalmente balanceados somada ao balanço genético dentro de uma população que encontramos a felicidade pessoal e social.

Reflexão sobre Convergente: Apagando Memórias

Outra discussão interessante do livro é o papel da memória na formação da identidade de uma pessoa. São três os momentos em que surgem questões interessantes:

Memória da Cidade

Primeiro, foi a proposta de apagar a memória dos moradores da cidade. Isso supostamente resolveria o problema do confronto iminente na cidade. Tris foi totalmente contra porque as pessoas perderiam todos os seus vínculos sociais e familiares, voltariam a ser desconhecidos. Praticamente apagar-se-ia a “vida” vivida da pessoa. Para ela, os problemas devem ser resolvidos através do diálogo e não no radicalismo.

Se lembrarmos da Bíblia, Deus supostamente já fez um “reset” da humanidade no dilúvio e não funcionou… Ou seja, não dá pra resolver nossos problemas simplesmente apagando os pensamentos porque a nossa natureza social não muda. Começar do zero só faria adiar o surgimento desse mesmo problema novamente.

Reiniciar uma sociedade não é progredir, é jogar ela novamente para o início do caminho e esperar que ela depois de algum tempo chegue novamente naquele problema.

Podemos pensar aqui nas nossas eleições. Não adianta nada mudar toda a câmara dos vereadores, deputados e senadores. Não é só questão de mudar as pessoas. Tem que mudar o caráter das pessoas. Quando votarmos, temos que pensar se a nova pessoa demonstra ser boa ou é só mais uma interessada na politicagem. Mudar tudo não adianta se a mentalidade ainda for a antiga.

Para melhorarmos, temos que progredir, e isso não acontece apagando o passado, mas ressignificando o presente.

Memória do Peter

Peter assumiu que era uma pessoa má. Decidiu tomar o soro da memória na esperança que se tornasse uma nova pessoa, esquecesse tudo de errado que fez e também o seu instinto mal que ele acreditava ter.

Vemos, no final do livro, que ele melhorou um pouco, mas que às vezes apresentava traços do “antigo” Peter. Isso nos faz pensar que quem somos não é apenas social. Existe uma natureza em todos nós que vai se demonstrar. O ser humano tem um fator biológico que não pode ser ignorado. Temos instintos assim como os animais, mesmo que mais facilmente controlados.

Mesmo Peter esquecendo tudo o que ele fez de errado e não tendo a educação para a violência que ele recebeu, ele ainda assim manifestou atitudes agressivas e arrogantes. Isso mostra que existe uma natureza em todos nós que, não importa em qual sociedade vivamos, vai aflorar.

O que muda é a oportunidade social de desenvolver ou não nossa natureza. Em um curso que fiz sobre educação especial, foi falado de um estudo o qual mostrava que em cada sala de aula, pelo menos um aluno possuía superdotação / altas habilidades. O problema é que, como não sabemos identificar nem estimular adequadamente, isso acaba passando despercebido e é ignorado.

A capacidade cognitiva é a mesma coisa. Crianças mais ricas não são mais inteligentes que as pobres, elas só tiveram acesso a uma educação melhor, que lhes deu mais oportunidade.

Por isso, para o bem ou para o mal, não podemos culpar só a sociedade nem somente o nosso biológico. Quem somos depende de uma combinação desses dois fatores.

Memória do Quatro

Quatro decide tomar o soro da memória para esquecer Tris porque ele não queria passar o resto de sua vida sofrendo a perda da mulher amada.

Christina (amiga de Tris) o convence a não tomar, lhe mostrando que seria uma atitude egoísta e covarde.

Perder alguém é muito ruim. Imagino que todo mundo já passou pela perda de alguém querido (família, amor, animal de estimação, ídolo). Mas a solução nunca é apagar essa pessoa de nossa memória. Fazer isso é até uma ofensa àquela pessoa (no caso de perdermos alguém querido, claro).

Guardar a memória de alguém importante que se foi é sempre lembrar do quanto somos gratos pelo tempo que passamos juntos e admitir que quem somos agora foi graças à contribuição daquela pessoa. Se ela não tivesse sido importante em nossas vidas, não sofreríamos a sua perda.

Logo, mesmo sendo duro, precisamos aceitar a perda e manter viva a memória, transformando a dor em saudade (como aprendi com o padre Marcelo Rossi). As memórias daquela pessoa fazem parte de quem somos e não podemos tirá-la porque deixaríamos de ser nós mesmos.

Reflexão sobre Convergente: Conclusão

No final dessa reflexão sobre Convergente, espero que vocês tenham curtido pensar comigo esses problemas interessantes trazidos por esse livro. Que possamos aprender com esse livro que nossa genética é perfeita, que biologicamente falando precisamos ser diferentes e que a atitude ética não tem a ver com genética, mas com caráter. Além disso, a memória do que vivemos diz quem somos; logo, apagar nossa memória não é uma solução para os nossos problemas, sejam eles pessoais ou sociais.

Reflexão sobre Convergente: Aprofundando o Assunto

Quem não tem os livros e quiser ler (ou reler) a saga Divergente, deixo aqui o sugestão dos livros: Divergente, Insurgente, Convergente, Quatro (partes da história da saga Divergente contadas pelo personagem Quatro) ou uma Box com os 4 livros.

Para quem curte os filmes e quer tê-los ou revê-los, deixo aqui a sugestão dos DVDs e Blu-rays (o link leva ao filme e nele você escolhe se quer DVD ou Blu-ray): Divergente, Insurgente, Convergente – Parte I (lembrando que o filme da parte II, que fecharia a saga, foi cancelado). Os filmes Divergente e Insurgente também estão disponíveis no Amazon Prime Vídeo.

Se quiser aprender mais sobre a ética aristotélica, recomendo: Ética a Nicômaco (Aristóteles), Novos estudos aristotélicos – III: Filosofia prática (Erico Berti) e A teoria do bem na “Ética a Nicômaco” de Aristóteles (Philipp Brüllmann).

Se quiser aprender mais sobre o problema do mal, recomendo: Santo Agostinho. O Problema do Mal (Bruno César G. da Silva).

E aí? O que achou dessa reflexão sobre Convergente? Deixa sua opinião nos comentários! Conhece algum fã de saga Divergente? Compartilha essa reflexão sobre Convergente com ele! Quer sugerir outras sagas para reflexão no blog? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.