Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: O Clérigo e a Ambiguidade da Guerra Justa e Santa

Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: O Clérigo e a Ambiguidade da Guerra Justa e Santa

Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre a saga de livros A Lenda de Ruff Ghanor. Nesses romances de fantasia medieval, acompanhamos o menino Ruff indo de uma criança abandonada até assumir a responsabilidade de lutar pela libertação do reino de Ghanor e manutenção da paz. A reflexão abordará sua classe de clérigo – que mistura vida religiosa e guerreira – e a ambiguidade dele matar em nome de deus, da paz e da harmonia. Não teremos spoilers. Vamos lá!

Sobre A Lenda de Ruff Ghanor (SEM Spoilers)

A Lenda de Ruff Ghanor é, atualmente, uma trilogia de livros no estilo romance de fantasia medieval escrita por Leonel Caldela inspirados nos NerdCasts RPG – Ghanor. Esses livros servem como prequela porque explicam a origem do antigo rei do reino de Ghanor e de alguns dos inimigos enfrentados.

Ruff foi um menino encontrado dentro de uma caverna proibida por dois monges do mosteiro de São Arnaldo. Desde o início, Ruff demonstrava ser especial e foi criado pelo Prior (o líder do monastério) para ser um clérigo: alguém que lutaria através do poder de deus para o bem do povo.

O grande inimigo a ser combatido era Zamir. Zamir é um dragão vermelho que se tornou o tirano do reino e governava a todos através da opressão, medo e destruição.

Ruff não gosta de ser considerado o escolhido. Ele não gosta de ter a responsabilidade sobre os ombros de salvar o mundo. Por isso, constantemente se questionará se deve ou não seguir seu destino.

Ao seu lado, ele terá Korin – seu melhor amigo, filho de um guarda da aldeia – e Áxia – uma menina malvista pela aldeia por ser filha de prostituta e envolvida com bruxaria.

Juntos, eles amadureceram da melhor e da pior forma, descobrindo o que é a vida adulta e sua responsabilidade.

Será que o grupo conseguirá salvar o reino de Ghanor? Será que conseguirão manter a amizade? Será que Ruff realmente é o escolhido? Descubra lendo ou ouvindo A Lenda de Ruff Ghanor.

          

     

Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: O Clérigo

Ruff é treinado para ser um clérigo. Clérigo é um personagem de RPG que pode ser descrito como o guerreiro santo.

Ele é um lutador, um combatente que possui uma moralidade elevada e, por isso, busca fazer sempre o bem e lutar por causas nobres.

O clérigo também costuma ter magias brancas dadas a ele pelo próprio deus, magias de dano que afetam mais seres das trevas e magias de cura, que ajudam aliados.

Se pensarmos na nossa história, podemos considerar que a classe dos clérigos é inspirada nas ordens militares (tanto nos relatos reais quanto fantásticos desses grupos).

Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: A Guerra Justa e Santa

A figura do clérigo nos faz questionar se é compatível a ideia de paz (muito comum nas religiões) e guerra (algo muito mundano).

Os filósofos e teólogos medievais refletiram sobre isso porque eles viveram em uma época em que ambas as questões coexistiam: uma hegemonia da religião cristã na Europa e um período cheio de guerras e lutas por poder e conquista.

Santo Agostinho (354-430) e a Justificação da Guerra

Para o bispo de Hipona, a paz total é algo impossível tendo em vista a natureza imperfeita do ser humano. Sendo assim, os homens sempre acabarão guerreando entre si para buscar – em última instância – ter suas vontades atendidas.

Logo, a guerra, para Santo Agostinho é um mal, fruto do pecado. Ao mesmo tempo, ela é um mal inevitável porque, em algum momento, pessoas boas terão que entrar em guerra contra pessoas más para restaurar a paz ou combater injustiças. Nessas condições, a guerra se torna um “mal menor”.

Percebam que Agostinho vê a aplicação da guerra apenas como um meio para se alcançar a paz e a justiça. Porém, mesmo ela sendo justificada, ela não se torna boa. Dessa forma, aqueles que lutam na guerra e cometem homicídio ainda estão cometendo pecado e precisarão pedir perdão pelos seus atos.

O fato da guerra ser justa não retira o mal dos atos cometidos nela.

Isidoro de Sevilha (560-636) e a Guerra Justa

O teólogo Isidoro de Sevilha definirá guerra justa como “aquela que se realiza por prévio acordo, depois de uma série de feitos repetidos ou para expulsar ao invasor”.

A novidade trazida aqui é a justificação da guerra tanto defensiva – para impedir que um invasor penetre nos seus territórios – quanto ofensiva – para expulsar um invasor que já se estabeleceu em algum território que não lhe era de direito.

Com isso, se justifica entrar em guerra contra locais que estão em relativa paz, mas que no passado não pertenciam àquele povo.

Papa Leão IV (847-855) e Santificação da Guerra

A santificação da guerra começa a tomar forma quando o papa Leão IV declara que todos aqueles que morressem na guerra contra os sarracenos (forma genérica usada pelos cristãos da Idade Média para se referir aos árabes ou aos muçulmanos) no Mar Mediterrâneo seriam salvos; e todos que matassem os infiéis estariam praticando bons atos que contariam para remissão dos seus pecados.

Dessa forma, a guerra se torna instrumento de salvação das almas e começa a ser vista como uma possibilidade prática de se alcançar o céu.

Bernardo de Claraval (1090-1153) e a Consolidação da Guerra Santa

Em 1095, o papa Urbano II convocou as primeiras cruzadas para libertar a Terra Santa dos mulçumanos. Para o líder da Igreja, isso fazia todo o sentido e se justificava porque aquelas terras pertenciam aos cristãos romanos, já que eram antigas posses do Império Romano.

Após o sucesso da primeira cruzada, foi criada a primeira ordem militar: a famosa Ordem dos Cavaleiros Templários. Eles eram uma combinação de monges e militares. Eles levavam uma vida monástica de oração, sobriedade, pobreza e castidade ao mesmo tempo que eram guerreiros que protegiam os cristãos que peregrinavam pela Terra Santa e protegiam aquelas terras de ataques mulçumanos.

Bernardo de Claraval escreveu um texto chamado Elogio à Nova Milícia Templária em que defende esse grupo religioso-militar porque ele combatia simultaneamente em duas frentes – a espiritual e a carnal – contra o mal.

Com esse texto, a comunidade cristã aceitou definitivamente a existência de pessoas que lutavam, matavam e morriam por uma motivação cristã e contra o mal.

Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: Refletindo sobre a Ambiguidade Religiosa da Guerra

Ruff lutava em nome de São Arnaldo. Era esse santo que dava poder ao jovem para realizar seus milagres e para ter forças sobrenaturais nos seus combates.

Na mitologia de Ghanor, existiam santos e deuses. Os santos eram figuras que um dia foram mortais, mas que alcançaram um certo status divino. Os deuses eram seres já eternamente todo-poderosos e criadores do mundo.

Ruff lutava por uma causa supostamente nobre e boa: proteger as pessoas do tirano Zamir. Ele fazia isso em nome de São Arnaldo, que seria uma figura que sempre quis o bem do seu povo.

Porém, nesse universo fantástico medieval, existiam vários seres místicos, várias figuras santas e vários deuses. Sendo assim, como saber se Ruff estava de fato lutando do lado certo da guerra? Como saber se seus atos estavam verdadeiramente fazendo a vontade dos deuses? Como saber se seus atos estavam de fato protegendo a vida das pessoas a longo prazo?

É muito complicado você associar a guerra a algo bom, independentemente do lado, e ainda mais complicado você associar a guerra à religião.

Dificilmente você encontrará quem admitirá que suas motivações para a guerra são más. Sempre alguém terá alguma justificativa “razoável” para a guerra. Peguem exemplos reais recentes e você terá argumentos como “combater terroristas”, “coibir criação de novas armas atômicas”, “retomar territórios históricos”. E quem está do outro lado também não pode dizer que a sua guerra de defesa é justa porque, se de fato a guerra de agressão se justifica, o lado defensivo está errado!

As coisas pioram ainda mais quando a religião se mistura com as motivações da guerra porque toda religião costuma se colocar como a verdadeira e, por isso, o outro lado será a da falsa religião. Vejam:

  1. Se você é cristão, judeu ou mulçumano, provavelmente vai concordar com as guerras que o povo hebreu travou no passado para reconquistar Canaã;
  2. Se você é cristão, provavelmente vai concordar com as primeiras cruzadas para retomar a Terra Santa;
  3. Se você é judeu, provavelmente vai defender Israel nos seus conflitos na Palestina;
  4. Se você é mulçumano, provavelmente acredita na Jihad islâmica.

Esses são só alguns exemplos que ilustram como a guerra motivada por religião não é garantia de estar fazendo o bem, porque o outro lado sempre considerará essa investida como um mal – para o lado que se defende, o inimigo representa o ser maligno que quer destruir a sua religião.

Reflexão sobre A Lenda de Ruff Ghanor: Conclusão

Acredito que a guerra em si é algo neutro, nem boa e nem má, apenas um instrumento para se alcançar um objetivo. As motivações da guerra, por outro lado, são sempre boas ou más, mas não em um sentido universal, mas sempre particular – ou seja, serão boas para uns e más para outros; podem ser boas agora e no futuro vistas como más. Sendo assim, julgo que a guerra sempre deve ser evitada e nunca defendida. Suas consequências nunca poderão ser absolutamente melhores a ponto que a justifique.

Pensar em um guerreiro do bem, alguém que diz fazer o bem através da guerra, da força, da violência pode funcionar na fantasia, mas na vida real é algo ruim. Defender esse tipo de pessoa é defender um homem-bomba, por exemplo.

Se você quer a prosperidade da sua religião, reze mais para o seu Deus e seja um exemplo de paz para as demais pessoas. Converta os outros através do amor.

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Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Referências

MORETTI JUNIOR, Augusto João. REIS, Jaime Estevão dos. O cristianismo e a justificação da guerra na idade média. In: VII Congresso Internacional de História, Universidade Estadual de Maringá, 2017, p. 507-515.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.