Reflexão sobre A Cura de Schopenhauer: Filosofia como Terapia?

Reflexão sobre A Cura de Schopenhauer: Filosofia como Terapia?

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o livro A cura de Schopenhauer. Esse é um romance contemporâneo que narra os últimos anos de vida de um terapeuta,  o qual tenta resolver negócios pendentes com antigos pacientes e acaba descobrindo que um deles se autocurou da sua compulsão sexual através da filosofia de Arthur Schopenhauer. Nessa reflexão, vamos abordar essa perspectiva de uso da filosofia como forma de terapia. Esse texto terá spoilers do livro, então fiquem avisados. Vamos lá!

Sobre A cura de Schopenhauer (COM Spoilers)

A cura de Schopenhauer conta a história de Julius Hertzfeld, um terapeuta de prestígio em São Francisco, Califórnia (nos EUA). Ele é viúvo e já possui uma certa idade. Ao fazer seus exames de rotina, descobre que está com uma mancha suspeita no corpo. Acaba-se confirmando que é um tipo agressivo de câncer de pele, chamado de melanoma. Ele faz o tratamento, mas não apresenta resultado positivo. Ele tem a estimativa de apenas um ano de vida ainda saudável.

Com essa contagem regressiva iniciada, ele decide que quer colocar suas coisas em ordem para morrer em paz. Isso o leva a pesquisar antigos pacientes, os que teoricamente não haviam sido curados com a sua terapia. Julius acreditava que sua terapia poderia ter tido um efeito retardado, ou seja, funcionado a longo prazo, só depois do fim da terapia. Assim, ele contata Philip Slate.

Philip foi o maior desafio e a maior decepção profissional de Julius. Foram três anos de terapia individual sem nenhuma melhora. O problema de Philip era compulsão sexual, ele era o que chamamos de predador sexual: precisava fazer sexo praticamente todos os dias, normalmente com mulheres desconhecidas, e a relação acabava logo após o sexo, sem nenhum envolvimento afetivo.

Para surpresa de Julius, Philip alega estar curado graças à filosofia de Arthur Schopenhauer, um filósofo alemão do século XIX. Julius fica curioso com esse processo de cura e decide conhecer mais sobre o filósofo e do processo de cura em si. Na conversa com Philip, Julius descobre que Philip quer praticar o que este chama de orientação filosófica, uma espécie de terapia através da filosofia. Porém, ele precisa cumprir algumas horas de estágio supervisionado. Ambos fazem um acordo: Julius proporcionaria a supervisão necessária e Philip deveria comparecer a sessões de terapia em grupo, para demonstrar seu processo de cura e seu método (no fundo, Julius não acreditava que Philip estava curado apenas lendo filosofia).

As sessões de terapia vão se sucedendo e Philip passa de um mero expectador, para um intenso participante. A grande mudança foi a retorno de Pam para as sessões. Pam havia se ausentado por um tempo para testar um método de meditação, mas não se adaptou. Quando ela retornou, ficou transtornada porque conhecia Philip, já tendo um caso amoroso com ele que a deixou extremamente magoada.

A presença de Pam fez Philip perceber que não estava tão curado quanto parecia, porque seus instintos predatórios estavam querendo retornar. Contudo, na penúltima sessão do grupo, parece que Philip consegue a sua cura. Depois de uma intensa conversa, ele se abre verdadeiramente ao grupo e começa a se aceitar e aceitar a proximidade das pessoas, que queriam ser suas amigas.

OBSERVAÇÃO: narrei aqui somente aquilo que era necessário para poder acompanhar a reflexão. O livro desenvolve muito mais dos demais personagens e também faz um boa biografia e explicação resumida da filosofia de Schopenhauer.

Reflexão sobre A cura de Schopenhauer: A Pergunta Oculta no Livro

Existe uma pergunta oculta durante todo o livro que é: pode uma filosofia servir como terapia? Eu digo que é oculta porque ela não aparece de forma direta, mas de forma indireta, pelos questionamentos dos personagens e das reações que eles têm às teorias filosóficas citadas ao longo do livro.

O autor do livro, Irvin D. Yalom, é um terapeuta profissional. Imagino que ele possa ter escrito esse livro para responder ao público essa pergunta através de um história.

A resposta que vejo no livro é: não, a filosofia não serve como terapia. Ela pode ajudar, mas não substitui.

Contudo, o livro termina com Philip trabalhando como orientador filosófico, fazendo uma sessão de terapia de grupo com viés mais filosófico do que psicológico. Então, afinal, o que está acontecendo?

Eu observo que o autor fez uma distinção entre o que eu chamo de filosofia como conteúdo e filosofia como interpretação.

Reflexão sobre A cura de Schopenhauer: Filosofia como Conteúdo x Filosofia como Interpretação

Philip se aprofundou nos conteúdos filosóficos de Schopenhauer e os tomou como máximas, como verdades autoevidentes. Isso o fez seguir à risca aquilo que era proposto pelo autor e até mesmo mimetizar o estilo de vida de Schopenhauer. Esse estilo de vida o teria ajudado a se livrar da sua compulsão sexual.

Entretanto, ficou “provado” que Philip não estava curado de fato. Na verdade, o conhecimento da filosofia de Schopenhauer o fez entender literalmente que o mundo é sofrimento e por isso ele precisava se desligar de tudo, inclusive das pessoas. Esse distanciamento emocional e físico garantiu que ele conseguisse controlar sua vontade por sexo.

Só que no momento em que ele começa a participar da terapia em grupo, ele vai aos poucos cedendo ao convívio. E ao ceder, ele vai se envolvendo emocionalmente, e ao se envolver, seus instintos predatórios começam a dar sinais de retorno. E isso o deixa apavorado.

A sua cura de fato só ocorreu quando ele se abriu totalmente ao grupo, quando ele falou o que sentia. Quando ele de fato se deixou ter amigos e querer um relacionamento fraternal com aquelas pessoas. É nessa hora que entra o que eu chamo de filosofia como interpretação.

Ao longo das sessões em grupo, Philip evitava falar o que sentia. Ele no máximo citava trechos de Schopenhauer, ou de filósofos citados por Schopenhauer (como Epiteto), ou de filósofos que incorporaram a filosofia de Schopenhauer (como Nietzsche). Também usava essas citações para dar dicas aos demais membros do grupo.

O problema é que teorias filosóficas são, como o nome mesmo diz, teorias. Elas são abstratas. Elas não se referem a uma pessoa, mas ao ser humano e à natureza. Por essa característica, ela precisa ser interpretada e transformada em um prática específica para cada pessoa. É preciso tomar o saber filosófico e trazê-lo para o contexto, para dar um sentido atual para aquele pensamento.

Philip não fazia isso. Ele levou tudo no literal. Por isso, tomou a decisão de se afastar de todos e reprimir sua vontade tentando não pensar mais em se relacionar afetivamente com ninguém para, com isso, evitar ter vontade de transar.

Mas no grupo, especialmente com a chega de Pam, com quem ele já havia tido uma aventura sexual que, inclusive, deixou mágoas profundas nela, foi que ele começou a se obrigar a interpretar a filosofia de Schopenhauer para a sua vida. Não bastava viver aquelas palavras de forma literal, ele tinha que trazer para o contexto dele. E ele fez isso.

Reflexão sobre A cura de Schopenhauer: O Processo de Cura

Ficou evidente que Philippe nunca havia se aberto para as mulheres com quem dormiu. Ele admitiu que quando começava a sentir que poderia ficar sério, ele sumia. Isso provou que, no fundo, sua compulsão sexual era uma forma de evitar se envolver emocionante, se entregar em um relacionamento. Ele tinha medo de se frustrar e usava o sexo com desculpa para não parar em apenas uma mulher.

Outra coisa que ficou clara foi que ele nunca se deu ao trabalho de saber como ficaram aquelas mulheres com quem ele dormiu. Ele estava crente que todas haviam superado ele, como se fosse uma aventura sexual. Entretanto, Pam lhe mostrou que sua atitude havia magoado ela e sua amiga. Imagine quantas outras ele não teria feito sofrer. Nesse momento, ele começou a desenvolver empatia pelo outro e isso o ajudou a conseguir frear seus impulsos: eu não vou fazer isso (transar com alguém só por transar) porque pode machucar alguém.

Outra coisa que pode ter ajudado, apesar de não ficar claro se foi uma ajuda consciente ou inconsciente, foi o fato de muitas das pessoas do grupo de terapia terem relatado que tiveram problemas ligados ao sexo (um transou com uma mulher bêbada, outra se prostituiu por diversão, outro se aproveitou da viuvez para transar com as mulheres que foram consolá-lo). Isso também deve ter gerado uma sensação de “não estou sozinho” em Philip. Assim, ele foi capaz de entender que não é um monstro, mas apenas um ser humano, que precisava lidar com seus impulsos sexuais.

Reflexão sobre A cura de Schopenhauer: Schopenhauer como (Mal) Exemplo?

Outro ponto que “denuncia” a filosofia como terapia, é que o livro intermedia a narrativa do romance com trechos biográficos de Arthur Schopenhauer. Nesses trechos, fica claro que o filósofo sofreu muito durante sua vida. O livro faz entender que a filosofia de Schopenhauer é praticamente uma sublimação do seu próprio sofrimento.

Ironicamente, o trecho bibliográfico mostra que Schopenhauer só começou a alcançar fama através de um livro em que ele era menos crítico do ser humano e valorizava a empatia como forma de uma pessoa minimizar o sofrimento da outra.

Foi exatamente isso que ocorreu com Philip. Quando ele abandonou aquela filosofia schopenhaueriana mais radical, que colocava o ser humano como um animal insaciável, e começou a viver a filosofia mais empática de Schopenhauer, que via a necessidade dos seres humanos se ajudarem para superar o sofrimento, que ele de fato foi curado. Só que essa filosofia tardia de Schopenhauer não foi aprendida nos livros, mas vivenciada na terapia.

Existe um problema muito sério na filosofia que é o recorte de um filósofo. Philip fez isso quando pegou para si só a primeira parte da filosofia de Schopenhauer. Se ele tivesse compreendido toda a filosofia schopenhaueriana, poderia ter se saído melhor. Muitas pessoas fazem isso, leem apenas o que interessa de um filósofo e o rotulam sem conhecer todo o seu pensamento, inclusive as mudanças que ocorrem, como no caso de Schopenhauer.

Conclusão

A conclusão que chego é que ambas as coisas, terapia e filosofia são importantes para o ser humano. Ninguém conseguirá ser pleno se fechando em si mesmo, envolto em um monte de teorias filosóficas. Para ser pleno, é preciso contextualizar essas teorias, colocá-las em prática com os demais seres humanos levando em consideração quem você é e a vida que você tem. A terapia ajuda o ser humano a se conhecer, a se entender. Somente se entendendo, ele pode aplicar na sua vida, na sua realidade aquele conhecimento filosófico abstrato.

Além disso, filosofia não foi feita necessariamente para servir de resposta para problemas pessoais. Inclusive, esse é um dos problemas mais comuns que ocorrem no primeiro semestre de um curso de Filosofia: várias pessoas entram achando que vão encontrar as respostas para os seus dilemas pessoais e acabam se frustrando porque ficam com ainda mais perguntas e dilemas.

Aprofundando o Assunto

Caso não tenha lido esse livro ainda ou queira reler, segue o link para comprá-lo: A cura de Schopenhauer (Irvin D. Yalom).

Caso queira se aprofundar no pensamento de Schopenhauer, sugiro (pode parecer que o livro está em alemão, mas ele está em português):

O mundo como vontade e como representação – Tomo I (Arthur Schopenhauer)

O mundo como vontade e como representação – Tomo II (Arthur Schopenhauer)

E aí? Quais são as suas interpretações do livro? Deixa aí nos comentários! Gostou dessa reflexão sobre A cura de Schopenhauer ou conhece um fã desse livro? Compartilha! Quer sugerir algum tema para reflexão nesse blog? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.