Outra Reflexão sobre A Plataforma: Explorando O Poço (Parte 2)

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Explorando O Poço (Parte 2)

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Explorando O Poço (Parte 2)

Olá, marujos! Hoje teremos outra reflexão sobre o filme A Plataforma / O Poço (prometo que é a última… kkkk). Nessa segunda parte da reflexão detalhada, vou explorar o restante do filme, que compreende os níveis 33, 202, 6 e o fundo do poço. Como vocês já devem saber, o artigo é cheio de spoilers, porque analisa praticamente todas as cenas e diálogos que considerei importantes (ou seja, quase tudo!). Se você gosta do debate filosófico, vê o filme primeiro e depois volta aqui. Se prefere ter uma explicação antes de ver um filme complexo, pode continuar lendo. Vamos lá!

Sobre A Plataforma

A Plataforma é outro nome dado para o filme O Poço da Netflix.

O filme tem esse nome porque ele apresenta uma plataforma flutuante que desce ao longo de um prédio gigante cheio de comida. O grande problema é que quem está embaixo depende da boa vontade de quem está em cima para comer. Por mais que pareça óbvio que as pessoas vão ter um mínimo de consciência, vemos exatamente o contrário.

No filme, acompanhamos a trajetória de Goreng (Iván Massagué), um voluntário para esse experimento.

Para ler o enredo com mais detalhes, confere o primeiro artigo que escrevi sobre o filme, em que faço uma análise geral sobre ele.

Sobre a Parte 1

Se você caiu nesse artigo antes dos outros, recomendo ler pelo menos a parte 1 dessa reflexão detalhada que estou fazendo. Na parte 1, eu explorei o começo do filme: os níveis 0, 48 e 171.

Não é que você só vai entender o que vou falar aqui se ler o que eu disse antes, mas acho legal “pegar o embalo” deixado pelo outro artigo. Mas se o que você que entender está nessa parte apenas, tudo bem. 🙂

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Cena a Cena (Nível 33)

Solidariedade espontânea

Goreng sobrevive ao nível 171 e chega no nível 33. Lá, conhece Imoguiri (Antonia San Juan), outra voluntária que já trabalhou para a Administração, na parte de admissão de candidatos.

Goreng entende que o propósito do poço é provocar solidariedade espontânea nas pessoas. Ou seja, que as de cima comam o necessário e deixem para as demais. Ele duvida que isso seja possível porque, segundo ele, mudanças nunca são espontâneas.

Isso é bem interessante porque mostra a necessidade de ação de alguém. É preciso que algo provoque a mudança. Aristóteles dizia que tudo o que se move é movido por outra coisa, gerando a nossa noção de causa e efeito. Isso também se aplica à sociedade, em que se faz necessária uma provocação para que as pessoas mudem seus hábitos.

Culpando a Administração

Imoguiri cria pratos balanceados e tenta convencer os debaixo a fazerem o mesmo, mas sem sucesso. Ela mostra que eles sofreram porque alguém não pensou neles, e que eles podem agir diferente.

Seu insucesso faz Goreng, contaminado pelo instinto de autopreservação, desdenhar da sua atitude e da Administração. Ele agora crê que o sistema causou tudo isso, mas ela o relembra que a Administração não é uma pessoa. Ela é uma entidade que busca por ordem nas pessoas e achar uma solução para os problemas.

As pessoas que são o problema. Muitas vezes reclamamos das entidades, como governo, Igreja, leis como se a culpa fossem delas. Na verdade, a culpa é das pessoas que estão envolvidas naquilo tudo (seja na posição de mandar ou na posição de obedecer). As entidades, nas suas teorias, são perfeitas. O problema surge quando as pessoas que estão envolvidas desvirtuam seu propósito.

No caso do filme, a Administração deu todas as condições necessárias para as pessoas viverem. Se elas não conseguem, a culpa é das pessoas e não da Administração.

Cagando para cima

Depois de 15 dias vendo Imoguiri fracassando na sua tentativa de criar solidariedade espontânea, Goreng ameaça estragar toda a comida com suas fezes se os de baixo não começarem a racionar a comida. Nessa hora, os dois do andar 34 param para ouvi-lo.

Imoguiri não gosta da “solução” encontrada, porque ela queria conscientizar as pessoas. Mas acaba resignada, ao ponto de perguntar se seriam capazes de convencer às de cima. Diante disso, Goreng diz que não, porque não pode cagar para cima.

Isso evidencia que o convencimento pela força só funciona enquanto você tem algum controle sobre o outro. É uma imposição. A conscientização é a melhor estratégia porque é duradoura, contudo, demorada. A opressão é mais rápida e eficaz, porém de pouca duração (apenas o tempo em que se tem o domínio do outro).

Sobre apelar para qualquer meio na expectativa de se conseguir um resultado, vale a pena ler um pouco sobre a política de Maquiavel.

A morte do cachorro

Miharu chega no andar 33 passando mal. Enquanto Goreng e Imoguiri a ajudam, o cachorrinho de Imoguiri sobe na plataforma e come tudo o que consegue, chegando a tirar comida da plataforma e causando a diminuição da temperatura.

Podemos interpretar isso como o fracasso da Imoguiri. O cachorro, que a acompanhou durante toda a jornada, na primeira oportunidade que teve, ignorou as regras de racionamento. Isso mostra que nem mesmo aqueles que estão perto de nós realmente compactuam das nossas ideias, às vezes seguindo-as apenas para nos agradar ou não chatear.

Miharu mata o cachorro porque ele não é honesto, ele não é um exemplo. Ao contrário, ele representa o fingido, aquele que finge agir bem pela frente, mas age mal pelas costas.

Outra interpretação que podemos fazer é que Miharu, ao matar o cachorro, representa aquelas pessoas que são ajudadas, mas se voltam contra aqueles que a ajudaram. A gente vê isso em alguns filmes ou séries policiais, quando uma pessoa acolhida em uma casa acaba roubando ou matando àqueles que a acolheram.

Quem é que traz um livro para esse lugar?

Desesperada, porque seu ideal caiu por terra, Imoguiri se revolta. Ela vê na figura de Miharu a loucura da sociedade, a prova de que ela está corrompida a tal ponto que não existe salvação.

Como foi Goreng que resgatou Miharu, ela o culpa também. Ela critica a pessoa que leva um livro para o poço, porque o livro representa a teoria, o ideário, sendo que ela agora perdeu a fé, ela só consegue ver a prática, o caos social.

Imoguiri revela que tem câncer e, após perder a batalha para ele, resolve entrar no poço. Seu gesto é um símbolo de toda as pessoas que não se importavam com nada e ninguém, mas depois que caem em si que suas vidas não valeram nada (no sentido de que não foram significativas para a humanidade), acham que precisam urgentemente fazer alguma coisa para redimirem suas existências.

Escargot la bourguignonne

Pela primeira vez, Goreng vê seu prato preferido chegar até ele. São poucas unidades, mas ele “sacrifica” quatro delas para deixar na porção para os do andar de baixo. Agora, é ele quem faz as porções porque Imoguiri ainda sofre.

Existe um ditado que diz “palavras convencem, mas o testemunho arrasta”. É isso o que acontece aqui. O sacrifício, a dor, o sofrimento vivido por Imoguiri fez efeito em Goreng, que espontaneamente começa a repetir o gesto dela. Esse é o início da redenção de Goreng, sua “conversão”.

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Cena a Cena (Nível 202)

Sacrifício

Imoguiri se enforca para dar de comer a Goreng. Ela sabe que ele não teria coragem de fazer algo, então ela mesma toma a iniciativa.

Muitas reflexões sobre o filme colocam Goreng como o Messias, o portador da palavra. Mas na verdade ele é o apóstolo, aquele que propaga a mensagem. Porque a representante de Cristo no filme foi Imoguiri.

Perceba que ela chega ao poço para pregar a solidariedade entre as pessoas. A maioria das pessoas escarna das suas palavras, mas alguns as ouvem. Ela faz o bem, mas a maltratam. Por fim, ela se sacrifica e dá o seu corpo como alimento.

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Cena a Cena (Nível 6)

Baharat e a fé cega

Baharat (Emilio Buale Coka) representa aqueles quem tem uma fé cega, aqueles que só sabem falar de Deus, colocam em tudo o nome de Deus e acham que Deus interfere em cada segundo de nossas vidas.

Baharat representa o fiel de uma teologia da prosperidade, alguém doutrinado para crer que a fé lhe proporciona tudo e que ele é alguém abençoado por Deus e, por isso, conquistará tudo.

Sua fé cega não faz com que ele perceba a maldade dos outros, e isso quase lhe custa a vida. Sobrevivendo, sofre e se desespera porque não entende como Deus o deixou passar por aquilo. Essa pessoa não aprendeu o exemplo do sofrimento de Jesus e não consegue passar pelo próprio sofrimento.

Um propósito de vida

Goreng entende seu propósito no poço. Ele decide quebrar o sistema levando comida para todos. Baharat não aceita de primeira, mas depois se convence quando percebe que ele pode usar a volta da plataforma para subir. Ainda está contaminado pelo foco na prosperidade, mas pelo menos aceita o sacrifício da descida.

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Cena a Cena (descendo ao fundo do poço)

Favorecendo a amizade

Logo na primeira descida surge um atrito. Os dois que lá estão são amigos de Baharat e querem comer. Nada errado em ter sua porção até Goreng dizer que só dividirão a partir do nível 51.

Surge a tentação de ajudar os amigos em vez de seguir o plano. O mal-estar com o amigo que lhe ajudou anteriormente para socorrer aqueles que se desconhecem. Podemos pensar aqui nos serviços públicos, quando o servidor é tentado a favorecer pessoas próximas em vez de agir com impessoalidade.

Baharat resiste e isso fortalece sua crença na causa.

O encontro com o sábio

Goreng e Baharat continuam a jornada até encontrarem o sábio. A primeira coisa a ser percebida é que eles estavam estragando a comida que estavam preservando. Depois, a compreensão do convencer para vencer.

Aqui podemos perceber que, quando tomamos a decisão de fazer algo, de “revolucionar o mundo”, geralmente fazemos devido a um impulso e começamos no improviso (se calcularmos demais, desistimos… kkk). Mas precisamos sempre que alguém de fora, alguém experiente, nos chame à atenção para percebemos as atitudes erradas que estamos tomando.

Esse é o momento de pausar a ação e se recompor para continuar. Rever o que foi feito e melhorar. Daí, dessa reflexão, surge a necessidade da mensagem da panna cotta.

A ideia da mensagem é simples de entender. Mais interessante é a percepção que a Administração não tem consciência. Isso retoma a ideia de que o governo, o ente público é só um conjunto de regras e ordenamentos, quem controla essa “máquina”, essas sim são pessoas que podem ter consciência. A panna cotta é uma mensagem para essas pessoas, para que elas entendam que se conseguiu fazer a autogestão pretendida.

Um protesto pacífico

Logo no primeiro encontro com a mensagem e a vontade de agir pelo convencimento, existe a falha. Baharat tenta expor a ideia de um protesto pacífico, mas não consegue convencer. Precisou-se usar da força e logo eles desistem do convencimento e partem para a agressão. O importante é a mensagem agora, mesmo que ela seja preservada pelo uso da violência.

O encontro com a pessoa com deficiência

A partir do nível 51 começou a distribuição de comida. De modo geral, estava indo tudo bem. Até que eles encontram um jovem com síndrome de Down e um idoso muito doente.

O jovem deixa claro que irá matar o velho e comer a comida que ele recebeu, e isso choca os portadores da mensagem. Podemos tirar duas interpretações desse momento:

  1. Não existem “coitadinhos”. Normalmente, consideramos pessoas com deficiência como pessoas que precisam da nossa ajuda ou pessoa melhores porque sofrem com um problema. Só que isso não existe. Elas são pessoas normais, para o bem e para o mal, capazes de fazer coisas ruins como qualquer outra.
  2. O esforço da divisão de comida era em vão. Aquele gesto só duraria um dia e logo depois as pessoas que estão em cima comeriam tudo de novo e as que foram alimentadas em baixo sentiriam fome novamente. Todo aquele trabalho é em vão porque as pessoas não mudam, é a sua natureza.

A Piscina e o Dinheiro

Já chegando no fundo do poço, dois andares chamam a atenção: a dupla na piscina e o homem do dinheiro. Duas interpretações que faço dessas cenas:

  1. A dupla na piscina estava triste, mas ambos estavam vivos e conscientes. Interpreto isso como exemplo daquilo que vemos em nossa sociedade brasileira. Muitas pessoas pobres, mesmo levando vidas que podemos considerar “de merda” não deixam de festejar. Sempre tem dinheiro para o churrasco, a cerveja e piscina de plástico. Para quem tem um pouco mais, vê isso como absurdo. Mas o pobre não liga e vai levando a vida como dá. Podemos entender que essa diversão, esses momentos lúdicos, são o alento que eles têm para sobreviverem e continuarem lutando.
  2. Já o homem do dinheiro mostra que o dinheiro em si, o papel, não vale nada. Não se come dinheiro. É aquele ditado “um galão de água no deserto vale mais do que um galão de petróleo”. Muitas vezes nos apegamos ao dinheiro e esquecemos que ele em si não vale nada se não puder ser trocado pelo que precisamos para viver. Priorizamos o acúmulo e esquecemos de aproveitar o que ele nos pode proporcionar. Não existe problema nenhum em juntar dinheiro para usufruir depois, o problema é só juntar, sem propósito.

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Cena a Cena (Nível 333)

A menina

Chegando ao último nível, Goreng e Baharat encontram uma menina. Ela está assustada, com fome. Goreng pede para Baharat dar a panna cotta para ela. Este reluta, mas cede. Ele não queria fazer porque o doce era a mensagem, mas depois percebemos que a mensagem tem que ter um propósito de mudança no portador, antes de fazer sentido para as demais pessoas. É o famoso “os primeiros ouvidos que ouvem são daquele que fala”.

Baharat usou da violência para conseguir chegar até aquele momento, mas ele precisava entender que a verdadeira mensagem passava pela solidariedade. Ele precisava mostrar que as pessoas são dignas porque na mais extrema provação elas ainda são capazes de agir com amor, com carinho, com doação.

Considerando que a menina é real (porque alguns a consideram um delírio de Goreng), ela sobreviveu não se sabe quanto tempo no poço. E ela estava intacta, perfeita. Ela estar desse jeito é a prova de que, por mais que os adultos fizessem tudo aquilo que fizeram ao longo dos meses no poço, eles preservaram a criança.

A mensagem passada é uma mensagem de esperança. Muitas vezes a criança já foi usada como símbolo de esperança e acredito que aqui também é. O diretor quis nos mostrar que ainda precisamos ter esperança na humanidade, que ela tem futuro porque não desiste.

E Goreng?

Ele era apenas mais um que entendeu isso e tentou lutar por isso. Ele não é importante, mas sim a mensagem. Ao longo da história, já surgiram diversas pessoas que tentaram resolver os problemas da humanidade, mas nunca conseguiram. Não conseguem porque todos somos limitados e incompletos. Conseguimos acertar com algumas coisas e acabamos errando em outras. Mas a humanidade nunca perde a esperança e é por isso que ela continua sobrevivendo.

Outra Reflexão sobre A Plataforma: Conclusão

Chegamos ao fim do poço e dessa longa reflexão detalhada. Esse tipo de reflexão pode ser mais cansativa, mas explora melhor o filme. Quando eu faço meus cursos de cinema, gosto de fazer desse jeito e ir dialogando com o público. Espero que tenham gostado e que eu possa ter contribuído para um melhor aproveitamento desse filme.

E aí? O que deseja comentar ou debater dessa outra reflexão sobre A Plataforma / O Poço? Deixa nos comentários! Curtiu essa outra reflexão sobre A Plataforma / O Poço? Compartilha para divulgar esse artigo! Sugestões de filmes para fazer outras reflexões como essa? Entra em contato comigo.

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.