uma reflexão sobre como o conceito de tempo mudou

Uma reflexão sobre o tempo

Olá, marujos! Eu escrevi esse texto em 2016, para uma aula aberta que dei na ocupação do Colégio Edmundo Silva, em Araruama, durante a greve dos professores, funcionários e estudantes do estado do Rio de Janeiro. Resolvi alterar o mínimo possível do texto ao publicá-lo aqui para não trair o seu propósito inicial (retirei apenas alguns parágrafos de desenvolvimento da parte de Bachelard, que ficou muito longa). Ele foi um texto produzido com uma intencionalidade, existiam motivações por trás de cada linha, cada ideia, cada comparação, cada citação. Adaptá-lo aqui seria retirar a alma dele. O mais interessante (ou triste) é que as reflexões continuam atuais, pouco mudou na forma de ensinar de lá para cá. Espero que gostem dessa reflexão sobre o tempo e comentem abaixo o que acham, e o que podemos fazer para mudar esse cenário.

 

Um Novo Conceito de Tempo ou um Novo Tempo?

 

No novo tempo, apesar dos castigos

Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas

Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer

IVAN LINS, Novo tempo

 

O tempo sempre foi algo desafiado para os seres humanos. Desde os primórdios, o homem já havia identificado a existência do tempo; entretanto, o que ele é ainda é um assunto a ser discutido. E, da sua definição, implica a forma como compreendemos a vida.

Quem me conhece, sabe que nas minhas primeiras aulas eu costumo explicar o que é a Filosofia ou, em outras palavras, qual o papel da Filosofia, como ela foi compreendida ao logo das épocas. Se vocês recordam, a Filosofia tem duas principais definições: 1. Buscar o sentido primeiro de todas as coisas, e 2. Criar conceitos. É isso que faremos aqui, com relação ao tema “tempo”. Buscaremos compreender o sentido primeiro do que seja “tempo” e também tentaremos criar um conceito sobre o “tempo”. Para isso, estudaremos o tempo na mitologia grega (representando a simbologia primitiva humana) e na religião cristã (representando a fé humana), e as filosofias de Parmênides e Heráclito (o efeito do tempo sobre as coisas), culminando nas filosofias de Bergson e Bachelard (o conceito de tempo).

Uma reflexão sobre o tempo: Mitologia Grega

Na Grécia antiga, o tempo era associado a um titã chamado Chronos. Titã para os gregos, eram as forças criacionais da Natureza, mais poderosos e mais ancestrais que os deuses olímpicos. Na mitologia grega, Chronos é conhecido como o pai que devora seus filhos. Essa compreensão mítica do tempo é muito interessante: os gregos se sentiam impotentes diante do tempo, que os “devorava”, que os “destruía”, que não os dava chances de fugir; ou seja, todo ser humano está sujeito ao tempo, está destinado a ser predado por ele, que não importava sua classe social, ele sofreria os efeitos do tempo.

Mas tem um ponto interessante. Um dos filhos de Chronos consegue escapar da voracidade de seu pai e, assim que atinge a idade adulta, o desafia e o vence, libertando seus irmãos. Esse filho é nada menos do que Zeus, o pai de todos, o senhor do Olimpo. Não foi à toa que ele foi coroado com tamanha glória, ele conseguiu uma proeza até então impossível: vencer o tempo. Mas é importante observar que Zeus não “matou” o tempo, ele o aprisionou, o acorrentando no deserto. Os deuses olímpicos representam as “características abstratas” do homem (sentimentos, afetos, desejos, racionalidade etc.), e Zeus tem papel de sustentar a Razão humana.

Logo, o que podemos entender disso tudo? Que a razão humana foi capaz de aprisionar o tempo, lhe retirando parte de sua força. Mas em que sentido? No sentido de delimitar o seu funcionamento. Como? Através da criação do calendário, do relógio, da contagem de anos, meses, dias e horas. Essa é uma forma de conter o tempo. Ele ainda passa, ele ainda nos consome pouco a pouco, mas nós criamos uma forma de “controlar” essa passagem. Somos nós que inventamos a forma como o tempo passa: a cada época e lugar, podem-se criar formas diferentes de contar o tempo, mas ele, em si é único.

Uma reflexão sobre o tempo: Cristianismo

A religião também buscou dar sentido ao tempo (ou, quem sabe, subjugá-lo). O cristianismo tentou minimizar os efeitos do tempo, porque era imperdoável existir algo mais forte e implacável do que Deus (no sentido monoteísta). As primeiras comunidades cristãs, que ainda viviam a efervescência da pregação dos apóstolos, testemunhas vivas das pregações de Jesus, estavam muito preocupadas com a perseguição romana. Chegando ao ponto de questionar a veracidade das palavras do Salvador, que prometera voltar em toda sua glória para libertar seus seguidores. Os padres da Igreja tiveram que criar um argumento sólido que lhes desse subsídio para manter seus fiéis confiantes diante das tribulações. Baseando nas escrituras, criou-se o conceito de Kairós, que em grego significa “tempo de Deus” ou “tempo da graça”. Esse novo conceito de tempo é religioso, por que, na sua definição, o Deus monoteísta é o criador de tudo, inclusive do tempo cronológico, que só afeta suas criaturas.

Logo, Deus está sob outra “jurisdição”. Para Deus, não existe passado, presente ou futuro: tudo está ocorrendo no mesmo momento para ele. E, nós, seus filhos, não podemos nos preocupar porque Ele sabe o momento certo de agir, tanto no sentido latto (toda a humanidade) quanto no sentido strictus (cada ser humano). E, junto com isso, existe a certeza cristã da vida eterna, uma vida pós-morte carnal, vida essa que não está mais sujeita ao Chronos (tempo cronológico), mas só ao Kairós (tempo de Deus). Esse foi um dos exemplos da tentativa do homem, nesse caso baseando-se na religião, tentar enfrentar seu maior inimigo: o tempo.

Uma reflexão sobre o tempo: Parmênides e Heráclito

Bom, como fica a Filosofia nisso tudo? Na Grécia antiga, os primeiros filósofos não questionaram o poder do tempo, mas se preocuparam em entender seus efeitos. Daí, despontaram dois filósofos: Parmênides e Heráclito.

Parmênides não aceitava o movimento do ser,  ele acreditava que a ação do tempo modificava a essência dos seres; logo, ou uma coisa era ou ela não era. O que isso quer dizer? Quer dizer que a aceitação de que o tempo nos afeta implica aceitar que nós aceitamos deixar de ser quem somos para nós tornar outros seres, perdemos a nossa identidade para assumirmos outra nova. O tempo não pode passar sem que nós também não passemos.

Já Heráclito acreditava no Devir, no movimento eterno dos seres. Para ele, o tempo sempre estará passando e a nosso ser não pode ser fixo, ao contrário está sempre se modificando junto com o tempo. A nossa essência está sendo a cada instante, sempre estamos nos atualizando, nunca somos estáticos. Nós somos sendo! Assim, ele defendia que a vida do homem deve acompanhar a passagem do tempo, que ele é o nosso grande amigo e condutor. Nunca parados, sempre novos. Nossa essência é novidade.

Uma reflexão sobre o tempo: Henri Bergson

Aqui, faremos um imenso salto no tempo! Passaremos do século V a. C. para o século XX d. C. Trabalharemos dois filósofos contemporâneos que aceitaram o desafio de dizer quem é (ou melhor, o que é) o tempo, o desafio de conceituá-lo: Bergson e Bachelard.

Bergson compreendeu o tempo como duração. Os momentos temporais somados uns aos outros formam um todo indivisível. “Para Bergson, o verdadeiro tempo é a duração, ou seja, o tempo vivido pela consciência. Em sua obra Essai sur lês donnés imédiates de la conscience afirma: ‘É, pois, no fluir da consciência que devemos apreender o tempo’, ‘é no dinamismo da consciência que vamos apreender a duração’. Para Bergson, a inteligência não consegue apreender a duração, pois, como é analítica, acabaria por fragmentar a consciência. A intuição, ao contrário, permite o contato do eu consigo mesmo, um contato imediato através do qual o eu se apreende como duração” (BARBOSA, 2004, p. 64-65).

Uma reflexão sobre o tempo: Gaston Bachelard

Para Bachelard, a duração seria um dado mediato, indireto. A consciência só tem certeza do momento que está vivendo, ou seja, daquele instante. Logo, nós intuímos o instante. E é exatamente disso que o tempo é feito: instantes. Sem passado e sem futuro, o que existe é o agora. É isso que é, e a consciência consegue apreender de forma imediata e direta esse instante que vivemos: que nasce e morre em um de repente. Para o filósofo “… o único tempo real é o instante (…) o instante se impõe de um golpe de forma completa para logo em seguida morrer (…) o instante é, portanto, uma realidade entre dois nadas” (BACHELARD apud BULCÃO, 2013, p. 80). “A duração e a continuidade temporal nada mais são do que uma construção do espírito humano” (BULCÃO, 2013, p. 28), da razão humana.

Uma reflexão sobre o tempo: Ocupação dos estudantes

Bom, e o que isso tudo tem a ver com o momento que estamos vivendo agora? Tudo! Desde segunda-feira à noite, esse colégio rompeu com os grilhões do tempo, que aprisionavam alunos e professores de almas livres. O sistema de ensino tradicional ruiu, esse sistema que se baseia em um currículo mínimo, nos obrigando a aprender o que não nos interessa e sim o que interessa à alguém que não sabemos quem; que em vez de bastar-se a si mesmo, dando uma formação completa de cidadão (propósito da educação básica) se transforma num longo curso preparatório para o ENEM; que em vez de possuir no seu corpo docente e administrativo pessoas preocupadas em abrir um universo de possibilidades aos alunos, se obriga a repetir velhas teorias como se fossem novas.

Chronos engoliu diversos filhos até o momento que o mais novo escapou graças à sua mãe Gaia (a terra), que deu uma pedra a Chronos em vez do seu bebê. Gaia é a terra fértil, onde germinam as sementes, aquela que nutre e possui a seiva da vida. A “Gaia” de vocês foram seus verdadeiros formadores (parentes, amigos, professores – cada um tem os seus), aqueles que fingiram “dançar conforme a música”, mas que no fundo estavam protegendo vocês como podiam enquanto os preparavam para o derradeiro combate contra o opressor tempo.

Vocês, jovens guerreiros, enfrentaram o titã que todos temiam e o derrotaram. Ao terem acesso às chaves da escola vocês se tornaram senhores do tempo. Cada dia de ocupação equivale a um dia de vitória, de controle sobre si mesmos. Vocês têm agora o poder de escolher os rumos da formação de vocês. Enquanto durar essa ocupação, vocês devem mostrar para a sociedade e para as autoridades o que vocês querem para a vida de vocês. Não tenham medo de falar o que pensam, de discutir abertamente suas vontades, impulsos e instintos. A repressão educacional acabou, nesse espaço deve-se dar vazão à liberdade.

Um novo tempo

Vocês têm nas mãos a possibilidade de se construírem no Devir, de estar sendo alguém novo a cada instante que estiverem aqui. Tudo terá sido em vão, se vocês não aproveitarem verdadeiramente essa ocupação. A incerteza de quando isso acabará deve ser a mola propulsora de uma vivência intensa. Lembrem, o tempo é um instante: o que está sendo agora ficará no agora. Não existe obrigatoriedade de basearem essa ocupação no passado nem temerem as consequências do futuro. Façam o que tem que ser feito! Apenas alerto que a liberdade traz responsabilidade e a autonomia tem seu preço. Não façam como aqueles lá fora, que culpam nosso passado e nossos “representantes” atuais como se não tivessem participação nisso tudo.

Começou um novo tempo, que será conduzido por vocês mesmos. A história está sendo construída agora e vocês são os protagonistas. Boa sorte, e que Zeus nos proteja. Obrigado.

————————————-

Gostou dessa reflexão sobre o tempo? Acha que a educação brasileira ainda tem muito o que melhorar? Deixa o seu comentário para debatermos e compartilha esse artigo nas suas redes sociais! Sugestões, entram em contato comigo.

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

Referências

BULCÃO, M. Bachelard vai ao cinema: imaginação, representação e instante. In: BULCÃO, M. (org.) Luz, câmera, filosofia: mergulho na imagética do cinema. São Paulo: Ideias & Letras, 2013.

Posted in Diversos and tagged , , , , , , , .

Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.