Uma Reflexão sobre Cobra Kai: a vida é, geralmente, cinza

Uma Reflexão sobre Cobra Kai: a vida é, geralmente, cinza

Olá, Marujos! A proposta de hoje é fazer uma reflexão sobre Cobra Kai, uma série do YouTube Premium que trouxe de volta o universo da trilogia clássica Karatê Kid. Nessa série, que se passa nos dias atuais, vemos os principais rivais do primeiro filme, Daniel LaRusso (Ralph Macchio) e Johnny Lawrence (William Zabka) adultos, mas ainda com questões mal resolvidas das suas épocas de adolescentes. Vamos conhecer um pouquinho desse universo e entender, junto com a série, que não podemos mais dividir a vida em um simples bem e mal, certo e errado, branco e preto. Na verdade, veremos que a vida é, geralmente, cinza.

Karatê Kid (trilogia clássica)

Quem é dos anos 80 e 90 viram esses filmes no cinema ou nas sessões da tarde na TV e acompanharam a saga do adolescente Daniel Larusso (Ralph Macchio), que aprende com seu mestre Sr. Miyagi (Noriyuki “Pat” Morita) não só uma arte marcial, mas também diversas lições para a vida. O enredo do primeiro filme, que será o foco aqui, é uma clássica história adolescente: um jovem recém chegado na cidade se apaixona pela garota mais bonita da escola. Só que ela é ex-namorada do valentão local. O valentão não gosta do novato e vive humilhando ele, até que aparece um adulto, na função de mestre / professor, que ajudará o novato e vencer o rival e conquistar a garota.

Nessa história clássica, o diferencial é o meio como a história se desenrola, que é o Karatê, uma arte marcial clássica, mas que ficou mundialmente conhecida, principalmente pelas crianças e adolescentes, através desse filme. O valentão, Johnny Lawrence é o principal aluno do dojo Cobra Kai. Seu mestre, John Kreese (Martin Kove), tem uma filosofia combativa, que valoriza o ataque e a força bruta para vencer. Para ele, vale tudo para ser campeão e conquistar seus objetivos. Quando Johnny e seus colegas estão dando uma surra em Daniel, aparece o Sr. Miyagi, um velho faz-tudo do prédio de Daniel, que se revela um excelente lutador de Karatê, e o salva.

Treinamento heterodoxo

Sr. Miyagi não concorda em usar o karatê para agredir, e sim como defesa. Ele acaba aceitando treinar Daniel-san para participar de um torneio local de karatê para ensiná-lo a se proteger dos agressores e também mostrar que a filosofia pacifista do karatê é mais efetiva que a filosofia combativa do Cobra Kai.

É nesse momento que começam as clássicas aulas de pintar cercas e encerar carros. Sr. Miyagi mostra a Daniel, que no começo só queria aprender a karatê para bater, que as artes marciais buscam o equilíbrio do corpo e da mente, e que não devem ser considerar para fazer o mal e sim para fazer o bem. Suas técnicas de ensino heterodoxas irritam Daniel no começo, mas depois ele aprende que estava realmente treinando e percebe que para tudo na vida existem etapas, que não devem ser puladas.

No fim, temos finalmente o torneio. Obviamente, Daniel ganha o torneio usando seu clássico “golpe da garça”, que muitos tentaram e ainda tentam imitar e que é uma referência cult em várias mídias. Mas, para fazer um gancho com Cobra Kai, vemos no desenrolar do torneio que Johnny (o rival valentão) começa a desconfiar da metodologia do seu mestre, e perceber que ele estava aplicando o karatê de forma inadequada.

Cobra Kai (série do YouTube Premium)

Diferentemente dos filmes, Cobra Kai tem como foco a vida do ex-rival Johnny Lawrence. 34 anos após os acontecimentos do primeiro filme, enquanto Daniel Larusso é um bem-sucedido empresário local, Johnny é um fracassado. Tem um emprego ruim, vive em um prédio velho em um bairro pobre. Tudo muda quando ele conhece Miguel Diaz (jovem que acabou de chegar na cidade e é vizinho de Johnny) e o protege de uns encrenqueiros que queria bater nele.

Johnny relembra seus tempos de karatê, em que ele era bom em alguma coisa e era reconhecido por isso. Ele decide reabrir o dojo de seu mestre, o Cobra Kai, e ensinar a doutrina “ATAQUE PRIMEIRO – ATAQUE COM FORÇA – SEM PIEDADE” que ele aprendeu. E isso despertará a raiva de Daniel-san, que vê aquilo como uma afronta e tentativa de trazer novamente uma péssima influência para a sua cidade.

Ao longo das duas temporadas disponíveis, vamos acompanhando as histórias dos dois rivais, que deixam claro que as diferenças entre eles não foram resolvidas. E, para piorar, essas diferenças colocam em conflito seus primogênitos e amigos, fazendo com que o karatê seja um motivo de discórdia entra a juventude local.

Uma Reflexão sobre Cobra Kai: a vida é, geralmente, cinza

Johnny Lawrence foi treinado e educado pelo seu mestre na doutrina Cobra Kai, ou seja, sua mentalidade para a luta e para a vida sempre foi “ATAQUE PRIMEIRO – ATAQUE COM FORÇA – SEM PIEDADE”. Após o torneio, ele deixou de ser o garoto popular, o dojo que ele frequentava caiu em desgraça e seu mestre foi embora. Sua vida ruiu. Johnny nunca teve um pai, e seu mestre John Kreese assumira esse papel, assim como o Sr. Miyagi era o mestre / pai de Daniel-san.

Quem Johnny é se deve a forma como ele foi educado, o modo como ele aprendeu a lidar com a vida. Certo ou errado, isso foi o que formou o seu caráter. Depois, adulto, e agora mestre, ele começou uma reflexão sobre os princípios que nortearam a sua vida e os revalorizou, ou seja, deu novos valores aos seus “três mandamentos”. Só que mudanças não são fáceis, especialmente quando mexem com questões íntimas, questões ligadas à sua infância. Mas ele, aos tropeções, vai tentando ser uma pessoa melhor.

Por outro lado, vemos Daniel com toda a sua vida feliz e estabilizada sofrer um choque ao descobri o retorno do Cobra Kai. Ele fica desestabilizado, mostrando que aquilo ainda é um trauma não superado. Ele não acredita na mudança de Johnny, enxerga tudo como um plano maléfico e, sempre que pode, atrapalha seu ex-rival. Johnny também culpa Daniel pela sua humilhação e isso faz com que os dois passem o seriado em constante guerra. Daniel decide reabrir o Miyagi-do, para ensinar a arte marcial da forma como ele aprendeu e, consequentemente, falir Johnny.

Nem herói, nem vilão

Aí, vemos algo muito interessante: não foi Johnny que foi provocar Daniel, e sim o contrário. Durante toda a série, sempre vemos Daniel atacando e Johnny se defendendo. Vemos Daniel usando de artimanhas para atrapalhar alguém que estava “quieto na sua”, só tentando se reerguer e recuperar um pouco de dignidade. Isso é interessantíssimo porque começamos a enxergar a história por outros olhos e ficar confusos sobre quem é o verdadeiro herói e vilão. E agora entra o “cinza” na história: na vida, geralmente, não existem heróis e vilões.

Só para deixar claro, o que não existem são personificações perfeitas e acabadas do arquétipo de herói e vilão. Na vida, todos nós somos capazes e normalmente agimos ora de forma heroica, ora de forma vilanesca, ora de forma neutra. Não somos seres estáveis, somos seres transitivos. Estamos sempre mudando de ideias, de atitudes. Às vezes somos egoístas, às vezes somos generosos. Às vezes educados, às vezes mal-educados. Às vezes justos, às vezes injustos. Por isso, não seria certo sermos julgados por uma ação ou uma atitude nossa.

O filósofo Aristóteles ensina, na sua Ética a Nicômaco (que é um livro que ele escreveu para o seu filho) que a virtude é um hábito, ou seja, deve ser adquirida ao longo da vida com boas práticas. Logo, uma única atitude não nos faz bons ou maus. O que nos “define” é a nossa dedicação em seguir um caminho. E mesmo isso não resolve o problema para Johnny e Daniel porque eles conseguem ser demasiadamente inconstantes. Não só sobre si mesmos e o karatê, mas sobre as demais questões de suas vidas.

Tal pais, tal filhos

Ambos têm filhos que acabam envolvidos sem querer nessa disputa. As ações dos pais ora os afastam, ora os aproximam de seus filhos. Na tentativa de serem os melhores, de se autoafirmarem, eles acabam afastando aqueles que gostam deles. Os dois novos mestres de karatê descobrem com o desenrolar da série que eles ainda têm muito que aprender para serem bons mestres.

Essa dualidade ou, podemos também dizer, esse tom cinza presente na série não se limita aos dois mestres protagonistas, mas também aparece em outros personagens adolescentes da série: o discípulo de Johnny, Miguel Diaz (Xolo Maridueña) e seu amigo Eli Moskowitz, vulgo Hawk (Jacob Bertrand); o filho de Johnny, Robby Keene (Tanner Buchanan); e a filha de Daniel, Samantha “Sam” LaRusso (Mary Mouser). Esses jovens, que estão no famoso período da adolescência e que estão lidando, além de seus próprios problemas juvenis, com o problema de seus pais e mestres, vivem esse conflito dentro deles de querer fazer o certo, mas ceder constantemente ao “errado” para atingir seus objetivos. No fim, percebemos que ninguém é totalmente santo ou demônio.

Uma Reflexão sobre Cobra Kai: conclusão

Cobra Kai é uma série que fala da dificuldade de se encontrar no mundo, da dificuldade que é saber quem você é e, pior, a dificuldade se fazer parecer perfeito aos olhos dos outros. Nessa nossa atualidade, em que todos nos veem através das redes sociais, queremos sempre mostrar para os outros que somos os melhores. Mas, na verdade, o que precisamos é nos conhecer de verdade e saber o que nós queremos e quem nós somos. Além disso, devemos perceber que não podemos espelhar nosso fracasso no sucesso de outra pessoa. Nós podemos (e devemos) nos reinventar sempre que for necessário, mas necessário para nós e não para os outros.

Nessa reflexão sobre Cobra Kai, também descobrimos que devemos aceitar que a vida, geralmente, é cinza. Que nem nós nem as demais pessoas somos capazes de viver 24 horas por dia uma realidade plenamente boa ou má. Que nós somos seres passíveis de falha e precisamos admitir isso desde o começo se quisermos ser melhores. Essa série quer nos ensinar a olhar com misericórdia para a vida dos outros e entender que todos têm problemas, passam por dificuldades, sofrem. Alguns até têm facilidade para lidar com isso, outros não, e devem ser respeitados e ajudados.

Por isso, não se sintam péssimos se fizerem algo errado. E nem achem que por constantemente fazer algo errado, não possam mudar. Da mesma forma, se acham que vivem uma vida boa, agindo sempre certos, não se acomodem para que a soberba não faça com que se transformem em alguém ruim sem perceberem. No final das contas, fica o ensinamento do mestre Lawrence:

“Essa doutrina na parede [ATAQUE PRIMEIRO – ATAQUE COM FORÇA – SEM PIEDADE]… Sigam ao pé da letra, vai deixá-los forte. Vai torná-los formidáveis. E também uns idiotas. É só tinta preta numa parede branca. Mas a vida não é preta e branca. Geralmente, é cinza. E é nas partes cinzas que o Cobra Kai do Johnny Lawrence demonstra piedade algumas vezes. Não significa que não podem ser durões. É preciso pensar não só com o instinto ou com os punhos, é preciso usar isto aqui [aponta para a cabeça]”.

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E aí? Gostou do artigo? Deixa um comentário sobre outra reflexão possível em Cobra Kai ou outra série ou filme que podemos ver essa reflexão sobra o cinza da vida. Não esquece de compartilhar essa reflexão sobre Cobra Kai para que mais pessoas possam conhecer essa série e aprender um pouco com ela. Quer sugerir algum assunto nerd para fazermos uma reflexão, manda uma mensagem para a gente.

Até a próxima e tenham uma boa viajem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.