Reflexão sobre Ratched: De Enfermeira e Louco Todo Mundo tem um Pouco

Reflexão sobre Ratched: De Enfermeira e Louco Todo Mundo tem um Pouco

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre a série Ratched. Essa série conta o início da carreira de Mildred Ratched em hospitais psiquiátricos. Para quem não lembra (ou não sabe), Ratched era a enfermeira-chefe no hospital psiquiátrico em que se passou o livro e filme Um Estranho no Ninho. Na série, descobriremos porque ela começou a trabalhar nessa área e também o que aconteceu com ela na infância e vida adulta que culminaram em quem ela se tornou. Na reflexão, irei explorar uma característica curiosa que aparece na série em alguns personagens: uma vontade “louca” de querer ajudar aqueles que estão “loucos” sendo que não enxergam as suas próprias “loucuras”. Também falarei um pouco da crítica que a série faz aos antigos tratamentos psiquiátricos e ao fato de alguns comportamentos diferentes serem considerados doenças psicológicas no passado. Essa reflexão terá alguns spoilers importantes da primeira temporada da série, por isso só leiam se não se importam ou já viram a série. Vamos lá!

Sobre Ratched (com SPOILERS)

Ratched é uma série do gênero drama e romance psicológico. É exclusiva da Netflix e estreou em 18 de setembro de 2020. Como já falei na introdução, ela serve como um prequel de Um Estranho no Ninho, contando fatos antecedentes desse universo (mais especificamente, pelo menos até o momento, da enfermeira Mildred Ratched).

No ano de 1947, Mildred Ratched (Sarah Paulson) chega na comunidade de Lucia (Califórnia, EUA), onde funciona um hospital psiquiátrico administrado pelo Dr. Richard Hanover (Jon Jon Briones), com o objetivo de ser contratada como enfermeira desse estabelecimento.

Logo descobrimos que a escolha desse local não é aleatória. Para lá será mandado o assassino Edmund Tolleson (Finn Wittrock), o qual descobriremos ser o irmão perdido de Ratched. Edmund foi mandado para lá porque matou quatro padres de uma paróquia e precisa de uma avaliação psiquiátrica para saber se ele cometeu o crime conscientemente (podendo, assim, pegar pena de morte) ou não.

Ratched consegue a vaga no hospital subornando uma outra enfermeira e começa a arquitetar um plano para fugir com o irmão. O que ela não esperava é que o irmão iria se apaixonar por outra enfermeira chamada Dolly (Alice Englert) e fugir com ela.

O plano do casal fracassa e Edmund agora está mais perto da morte do que da liberdade. Enquanto Ratched tenta lidar com esse problema, ela também precisa lidar com a sua sexualidade, pois descobre que é lésbica (algo visto como uma disfunção psicológica na época).

Também acompanharemos a vida e o passado do Dr. Hanover, que tem o sonho de encontrar a cura de todas as doenças psicológica, assim como a medicina tradicional conseguia encontrar curas para as doenças fisiológicas. Curiosamente, também descobriremos um passado sombrio do Dr. Hanover e veremos que ele não é muito estável para a sua profissão.

Reflexão sobre Ratched: Esclarecimentos e Avisos

Para fins de entendimento, vou considerar neurose como qualquer transtorno mental em que a pessoa não perde o controle sobre si mesma. Ou seja, a pessoa tem algum comportamento considerado “anormal” pela maioria das pessoas, mas isso não quer dizer que ela não saiba quem ela é e nem deixa de ser quem ela é. Ela só não consegue controlar esse comportamento neurótico.

Não sou psicólogo nem psiquiatra, então peço desculpas por qualquer erro técnico durante a reflexão. Também peço que não considerem minhas palavras como diagnóstico de ninguém. A minha proposta é mais uma provocação, para saber se nos conhecemos de fato e se somos capazes de julgar os outros. Qualquer dúvida ou angústia sobre isso, procure um profissional qualificado!

Reflexão sobre Ratched: Qual é a sua Neurose?

A série nos faz perceber que todos nós temos alguma neurose. Todos nós temos alguma mania, obsessão, “probleminha” mental. A questão é que consideramos o nosso comportamento “normal” enquanto que julgamos o comportamento dos outros como “anormal”.

Ratched tem total condescendência para com seu irmão, que matou quatro padres porque sua mãe foi um freira que engravidou de um daqueles padres e, depois, foi largada pela igreja e acabou indo para a prostituição. Ela acredita que Edmund perdeu o controle e foi afetado psicologicamente por tudo o que ele viveu.

Ela não está errada. Só que ela não percebeu que ela também não é tão “normal” quanto parece. Ela também foi afetada pela infância problemática que os dois passaram, ao pularem de casa em casa adotiva, com pais adotivos que só queriam o dinheiro do governo ou que queriam explorar sexualmente as crianças.

Ratched não percebeu que desenvolveu uma compulsão pelo irmão, um desejo de protegê-lo a qualquer custo que a fez cometer vários crimes e prejudicar várias pessoas que não tinham nenhuma relação com esse problema.

Da mesma forma, também acompanhamos o Dr. Hanover querendo revolucionar o tratamento psiquiátrico com várias técnicas modernas. Sua busca pela “cura” das pessoas o fez praticar técnicas de lobotomia e terapias com sofrimento controlado. Ele era tão obcecado pelo trabalho que não percebia o mal que estava causando em seus pacientes. Também não percebeu que sua obsessão pelo trabalho o afastou da sua família.

Esses são só alguns exemplos de pessoas que se consideravam normais na série, mas agiam como anormais. Só que elas mesmos não percebiam isso porque estavam ocupadas “ajudando” os outros, que seriam os problemáticos.

Essa questão me lembrou muito do conto O Alienista de Machado de Assis. Para quem não conhece [início de SPOILER] é a história de um médico que abre uma casa de loucos e julga que todos os habitantes da cidade merecem estar lá dentro porque possuem algum problema mental. No final, ele percebe que o louco era ele porque seria o único “normal” [fim do SPOILER].

A conclusão do conto é semelhante à da série: todos temos nossas neuroses, todos temos nossas obsessões. Logo, não cabe ficar julgando o comportamento dos outros como errado. Todos nós temos alguma atitude desviante. Todos temos “tetos de vidro” e, por isso, não podemos “lançar pedras no telhado dos outros”.

Ao contrário, admitir que também temos nossos problemas nos aproxima das outras pessoas. Às vezes, a outra pessoa quer mudar, não gosta do que ela faz / sente e podemos ajudá-la sem julgá-la, mas compreendendo-a. Da mesma forma, se a outra pessoa está satisfeita com aquilo que ela faz, não cabe à gente querer ficar forçando a sua mudança. Se ela se sente bem como ela é, deixa (contato, claro, que isso não cause um mal a ela ou a terceiros)!

Reflexão sobre Ratched: A História da Loucura

Michel Foucault tem um livro bem interessante chamado A História da Loucura. Nele, ele explica como surgiu a noção de loucura, as lendas referentes a isso (como a história do barco que recolhia os malucos das cidades, e que inspirou o nome desse blog), e como o comportamento desviante se tornou uma doença, com a necessidade de internação e tratamento compulsório.

Seu estudo mostra a mania (olha que curioso!) das pessoas em querer julgar os comportamentos morais em certos e errados, em normais e anormais. Sua conclusão revela que não existe padrão adequado para escolhas morais, que todos são construções históricas. Sendo assim, quando julgamos alguém por estar agindo errado, estamos na verdade defendendo a existência de um falso padrão de comportamento humano.

Isso fica muito claro na série no personagem de um garotinho, que provavelmente sofria de TDA (transtorno de déficit de atenção), o qual foi submetido a uma lobotomia para ficar mais calmo e concentrado. Pode parecer coisa de ficção, mas no passado realmente se receitava esse tratamento para “curar” crianças desatentas e/ou hiperativas.

Também vemos esse problema no tratamento do lesbianismo. Duas mulheres, após uma lobotomia sem resultados, foram submetidas a um tratamento de banho fervente acompanhado de um resfriamento rápido. Depois dessa tortura disfarçada de tratamento médico, obviamente elas responderam que nunca mais iriam se aproximar de outra mulher. Foram “curadas”? Claro que não! Ela mentiram para não sofrerem mais essa agressão física.

Sabe o que é pior? Ainda hoje pais não aceitam a existência do TDA ou TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade). E quando aceitam, preferem que o filho tome remédios psicotrópicos fortes para acalmarem, em vez de adaptar a vida cotidiana à realidade da criança. Ela não é doente, ela é diferente. Sua diferença traz algumas dificuldades para ela cumprir os padrões sociais, especialmente os escolares. Mas isso não justifica chamar tudo de manha ou preguiça nem entupi-la de remédios.

Da mesma forma, ainda hoje existem “tratamentos de cura gay”, como se a única orientação sexual existente fosse a heterossexualidade e qualquer outra opção seria um defeito (seja biológico, psicológico ou social). Muitas pessoas não conseguem aceitar que alguém ame de uma forma diferente da sua. Muitas vezes, esquece de olhar para si mesmo e perceber que quando falamos de amor e sexo, todos temos desejos únicos e diferentes.

Reflexão sobre Ratched: Conclusão

Ao final dessa reflexão sobre Ratched, percebemos o quanto ainda precisamos evoluir na compreensão do ser humano. O quanto ainda achamos que somos donos da verdade sobre o outro. Que possamos um dia admitir que todos somos um pouco loucos e que isso não é defeito, é virtude. Nossas diferenças e preferências é que nos fazem especiais. Que possamos nos aceitar e aceitar os demais, sem preconceitos. Ajudando quem precisa de ajuda, quem pede ajuda. E não impondo nosso padrão sobre os demais. Vivamos a loucura da vida!

Aprofundando o Assunto

Caso queira ver (ou rever) a série Ratched, ela está disponível na Netflix.

Caso queira ver (ou rever) o filme Um Estranho no Ninho (que inspirou a história de Ratched), você pode vê-lo no Amazon Prime Vídeo ou comprar o DVD / Blu-ray.

O filme Um Estranho no Ninho é baseado em um livro de mesmo nome do escritor Ken Kesey. Caso tenha curiosidade de ler a história original você pode comprá-lo aqui.

Caso queira ler (ou reler) o conto O Alienista de Machado de Assis, pode comprá-lo aqui ou lê-lo gratuitamente com uma assinatura Kindle Unlimited.

Se ficou interessado no trabalho de Michel Foucault, deixo como sugestão a leitura do seu livro A História da Loucura.

E aí? Quais foram as suas impressões sobre a série Ratched? Deixa aí nos comentários! Conhece algum fã de Ratched ou Um Estranho no Ninho? Compartilha essa reflexão sobre Ratched com ele! Quer sugerir alguma série, filme ou livro para reflexão nerd? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

Posted in Reflexões Nerds, Séries / Minisséries and tagged , , , , , , , , , , , , , .

Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.