Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: Uma Interpretação de Averróis

Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: Uma Interpretação de Averróis

Olá, marujos! Hoje, explicaremos o conceito filosófico conhecido como Doutrina da Dupla Verdade de uma forma descomplicada. Apresentaremos o filósofo árabe Averróis, a quem erroneamente é atribuído esse conceito; explicaremos qual é realmente o seu pensamento; e, por fim, explicaremos como surgiu e o que é a Doutrina da Dupla Verdade. Vamos lá!

Sobre Averróis

Abu al-Walid Muhammad ibn Ahmad ibn Muhammad ibn Rushd, mais conhecido pelo nome latino Averróis, foi um filósofo árabe medieval.

Ele nasceu em Córdoba, Espanha em 14 de abril de 1126. Era uma época em que os árabes haviam conquistado parte dos territórios europeus.

Ele era de uma família nobre, e trabalhou como juiz e médico.

Averróis era próximo do governador da região, o califa Abu Iacube Iúçufe, que lhe patrocinou. Com isso, Averróis teve bastante tempo para os estudos.

Averróis se dedicou ao estudo de Aristóteles de tal forma que era conhecido como “O Comentador”. Ele tentou ao máximo resgatar o pensamento puro aristotélico que, segundo ele, sofreu deturpações por interpretações equivocadas.

Ele foi muito próximo da corte islâmica, mas defendia uma autonomia da filosofia sobre a teologia.

Após a morte do califa Abu Iacube Iúçufe (em 1184), ele continuou próximo da corte. Entretanto, acabou sendo perseguido pelas autoridades islâmicas em 1195, quando foi condenado por impiedade e exilado.

Ele chegou a conseguir uma reaproximação com a corte islâmica 1198, mas morreu logo depois, em 11 de dezembro de 1198.

Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: O Real Pensamento de Averróis

Averróis sempre teve que defender a filosofia das críticas feitas pela tradição islâmica sunita. Muitos estudiosos islâmicos apontavam heresias no pensamento filosófico, contradições com aquilo que estava no Alcorão e acusavam a filosofia de negar a fé islâmica.

Como forma de rebater essa crítica, Averróis escreveu um texto chamado O tratado decisivo, determinando a natureza da conexão entre religião e filosofia, mais brevemente conhecido como O tratado decisivo. Nesse tratado, Averróis defende a filosofia.

Em seu primeiro capítulo, ele demonstra que:

1. Nós conhecemos Deus através da sua criação e que a filosofia é o estudo privilegiado para se conhecer o mundo;

2. A própria lei islâmica incentiva o estudo da filosofia (citando algumas passagens do Alcorão que incentivam o estudo da natureza);

3. Para se fazer um estudo adequado da natureza, é preciso se conhecer bem lógica (lógica aristotélica);

4. O estudo da filosofia antiga é válido porque são aceitos conhecimentos antigos de outras áreas (como matemática e direito), e é humanamente impossível querer se aprender tudo “do zero” em algum assunto, ignorando tudo o que já se foi falado sobre aquilo;

5. Existem três caminhos que o direito islâmico oferece para a verdade: o método demonstrativo, o dialético e o retórico. O método demonstrativo é baseado nas deduções lógicas e empregado pelas ciências (incluindo a filosofia); o método dialético é baseado no debate e empregado pelos teólogos e intérpretes da religião islâmica; e o método retórico é baseado na persuasão e empregado pelo Alcorão.

Em seu segundo capítulo, ele demonstra que:

1. A verdade demonstrativa não pode entrar em conflito com a verdade bíblica porque a própria religião estimula o estudo (como ele demonstrou no começo do livro);

2. Dessa forma, quando existem contradições, o significado bíblico deve ser reinterpretado, enxergando-o como uma metáfora, uma alegoria;

3. Essa atitude não é estranha ao islamismo porque já é comumente praticado em questões do direito islâmico;

4. Além disso, todos os mulçumanos aceitam o fato de que algumas passagens do Alcorão são metafóricas. O problema é saber o limite para essa visão (ou seja, até onde algo dito no Alcorão é literal ou metafórico);

5. O fato de existir um certo consenso para alguns temas não pode ser usado como argumento para se definir definitivamente (desculpa a redundância) que algo no livro sagrado é literal ou metafórico. Averróis dirá que é praticamente impossível se ter certeza de tal consenso porque não se conseguiria consultar todos os estudiosos já existentes sobre o tema para se verificar se ninguém pensou diferente. Dessa forma, Averróis vai dizer que o consenso sempre é temporário, o que abre brecha para mudanças de interpretação;

6. Até mesmo provado o erro de um filósofo, ele deve ser desculpado porque ele é um estudioso da área e, se errou, não foi por ignorância, e sim porque seu método o conduziu para aquele caminho e ele estava sendo sincero e fiel ao método que achava o verdadeiro. Como forma de argumento, Averróis mostra que a lei islâmica perdoa juízes quando tomam decisões erradas achando que eram as certas.

No terceiro capítulo, Averróis vai mostrar que a filosofia não deve ser proibida em si, mas sim proibida para quem não tem formação adequada para ela. Dessa forma, o filósofo propõe que o estudo da filosofia deva ser permitido, mas somente para quem tem condições de compreender a filosofia.

Resumindo:

Para Averróis, não pode existir contradição entre Filosofia e Religião. Quando tal contradição surge, ela é apenas aparente. Aparente porque o texto sagrado foi lido de forma literal, sendo que deveria ter sido lido de forma alegórica/metafórica.

Com isso, percebe-se uma valorização do conhecimento filosófico sobre o escrito sagrado porque a filosofia alcança a verdade pela demonstração (comprovação) enquanto o Alcorão propõe verdades pela persuasão (convencimento).

Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: Interpretação Posterior do Averroísmo Latino

O Averroísmo Latino

Averroísmo latino é o nome dado para uma corrente filosófica do período medieval de pensadores cristão que interpretavam e defendiam a filosofia de Averróis. Por várias vezes o averroísmo foi condenado pela Igreja por cometer heresias.

Isso não quer dizer que o pensamento de Averróis foi descartado. Ao contrário, sua filosofia e seus comentários de Aristóteles foram importantíssimos para Tomás de Aquino. O que Tomás fez foi preservar aquilo que era válido para a teologia cristã e descartar aquilo que entrava em contradição com a fé.

Definição da Doutrina da Dupla Verdade

Existem duas verdades distintas: a verdade da razão e a verdade de fé. Em alguns momentos, ambas verdades diriam a mesma coisa. Em outros momentos, diriam coisas distintas. Quando houvesse contradição, não se poderia dizer que uma está certa e a outra errada. Ao contrário, ambas estariam certas.

O Surgimento da Doutrina da Dupla Verdade

A definição da doutrina da dupla verdade não está expressa nas filosofias dos averroístas latinos, mas sim nas condenações feitas a eles.

Dessa forma, percebemos que ninguém declarou escancaradamente esse pensamento. Mas ele foi expresso com outras palavras baseando-se na defesa feita à filosofia por Averróis.

O motivo disso era a necessidade de os filósofos “libertarem” a filosofia da teologia.

Críticos da Doutrina da Dupla Verdade

Essa interpretação sobre a existência de duas verdades distintas e opostas foi condenada pela Igreja porque, para ela, a verdade de fé é superior à verdade da razão, compreendendo que o problema está na razão: ou o raciocínio está errado ou incompleto.

Para Tomás de Aquino, quando existem contradições, a fé deve prevalecer. Como justificativa, ele argumenta que podem existir temas impossíveis de serem compreendidos pela razão. Em outros casos, o problema está no filósofo, que não teve capacidade intelectual para fazer a adequação necessária e apelou para a doutrina da dupla verdade como forma de esconder seu fracasso.

Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: Conclusão

Podemos concluir que o conceito conhecido como Doutrina da Dupla Verdade não foi um conceito estabelecido oficialmente por nenhum filósofo. Ao contrário, sua definição surge exatamente pelos críticos a esse conceito. Isso não quer dizer que tal pensamento não existia. Provavelmente, ele existia de forma disfarçada, utilizando-se uma linguagem mais cuidadosa para se evitar a condenação pela Igreja, e tinha como inspiração o pensando de Averróis. Porém, como vimos, não foi Averróis que propôs a Doutrina da Dupla Verdade tal como a compreendemos atualmente.

Doutrina da Dupla Verdade Descomplicada: Referências

GEORGE F. HOURANI. Averroes on the harmony of religion and philosophy. Disponível em http://www.muslimphilosophy.com/ir/fasl.htm#dt. Acessado em 02 jun. 2021.

WIKIPÉDIA. Averróis (inglês) e Doutrina da Dupla Verdade (francês).

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.