As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Metáfora de Nietzsche (Ética)

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Metáfora de Nietzsche (Ética)

Olá, marujos! Hoje, explicarei a metáfora de Nietzsche de as três metamorfoses do espírito de uma forma descomplicada. Após breve apresentação do filósofo e da obra onde essa metáfora aparece, irei apresentá-la e explicá-la, usando exemplos hipotéticos do nosso cotidiano e exemplo da cultura pop. Vamos lá!

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Sobre Nietzsche

Friedrich Nietzsche nasceu na antiga Prússia (hoje, Alemanha) em 15 de outubro de 1844. Filho de um pastor luterano e criado sob essa doutrina, começou a questionar sua fé na adolescência. Com grande vocação aos estudos, começou a cursar Teologia por influência da mãe, mas logo trocou para o curso de Filologia (se especializando no grego). Antes de ingressar como professor de filologia clássica, chegou a participar da guerra franco-prussiana. Ao longo de sua vida escreveu vários livros e lutou contra uma doença (provavelmente sífilis) que o debilitava muito. Em 1889 teve um colapso mental que encerrou sua carreira intelectual. Ficou internado, em estado quase vegetativo, por 11 anos até morrer em 1900.

Para saber mais de sua vida, recomendo: Nietzsche Descomplicado: Biografia e Filosofia.

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Sobre Assim Falou Zaratustra

Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém (nome completo) é a obra mais famosa de Nietzsche, publicada originalmente em 1883.

O livro, apesar de ter uma história e ser uma narrativa, é altamente alegórico.

Normalmente ele é vendido como um tomo, mas, na verdade, esse livro é a reunião de 4 volumes. Nietzsche tinha a intenção de fazer mais dois volumes, incluindo, inclusive, a morte de Zaratustra. Infelizmente, os dois volumes finais nunca foram produzidos.

A história narra a tentativa do profeta Zaratustra de convencer os moradores da cidade Vaca Malhada a evoluírem moralmente. Seu objetivo era ajudar os humanos a chegarem no próximo passo na evolução da espécie, chamada de Übermensch (normalmente traduzido por “super-homem”, mas que literalmente é “além-do-homem”). Após um discurso público infrutífero, ele parte para conversas individuais.

Uma prova da fama desse livro é a quantidade de edições que existem dele. Colocarei várias atuais abaixo para que você possa escolher de acordo com seu gosto e bolso:

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: O Texto

A passagem das metamorfoses está presente logo no começo do livro. Seguem os trechos mais importantes:

“”Apresento-lhes três transformações do espírito: como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança. Há muitas coisas difíceis para o espírito, para o espírito sadio, sólido, respeitável. A força deste espírito está clamando por coisas pesadas, e das mais pesadas. Há algo que seja pesado? – pergunta o espírito sólido. E ajoelha-se como camelo e quer que lhe deem boa carga. Que há de mais pesado, heróis – pergunta o espírito sólido – a fim de eu o deitar sobre mim, para que minhas forças se deleitem? […] O espírito sadio sobrecarrega-se de todas estas coisas pesadíssimas; e, à semelhança do camelo que corre carregado pelo deserto, assim ele corre pelo seu deserto. No deserto mais isolado, porém, efetua-se a segunda transformação: o espírito torna-se leão; quer conquistar a liberdade e ser senhor do seu próprio deserto. Procura então o seu último senhor, quer ser seu inimigo e de seus dias; quer lutar com o grande dragão para derrotá-lo. Qual é o grande dragão a que o espírito não quer chamar Deus, nem Senhor? “Você deve”, assim se chama o grande dragão; porém o espírito do leão diz: “Eu quero”. […] Valores milenários cintilam nessas escamas, e o mais poderoso dos dragões assim fala: ‘Em mim cintila o valor de todas as coisas’. Todos os valores já criados foram, e eu sou todos eles. Para o futuro não deverá existir o “eu quero”! Assim disse o dragão. […] Criar novos valores é coisa que o leão ainda não consegue; contudo criar uma liberdade para a nova criação, isso o consegue o poder do leão. Para instituir a liberdade e um santo não, mesmo perante o dever; para isso, meus irmãos, é necessário o leão. […] Como o mais santo, amou em seu tempo o “tu deves” e agora tem que ver a ilusão e a arbitrariedade até no mais santo, a fim de conquistar a liberdade à custa do seu amor. É indispensável um leão para esse feito. Digam-me, porém, irmãos: que poderá a criança fazer que não haja conseguido fazer o leão? Para que será indispensável que o altivo leão se transforme em criança? A criança é a inocência, e o esquecimento, um novo começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação. Sim; para o jogo da criação, meus irmãos, é necessária uma santa afirmação: o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo quer conseguir o seu mundo. Três transformações do espírito vos expus: como o espírito se transforma em camelo, o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança.” Assim dissertava Zaratustra” (Extraído do livro Assim Falava Zaratustra, de F. Nietzsche; Hemus, S. Paulo, 1977).

Como o texto é de um estilo poético “complexo”, vou reescrever a história de uma forma ainda poética, mas mais simples:

Era uma vez um espírito (entendido como um ser, uma consciência) que, agindo como camelo, pedia para carregar uma pesada carga e tinha orgulho em poder suportá-la.

Esse espírito-camelo foi até o deserto e lá se arrependeu de ter aceito essa pesada carga. Arrependido, ele se revolta contra seu antigo senhor, que lhe deu essa carga.

Nessa hora, o espírito-camelo se torna o espírito-leão. E seu antigo senhor, agora inimigo, é um dragão.

Esse dragão se chama “Dever” e suas escamas são feitas de todos os valores morais existentes. O atual espírito-leão já foi o mais obediente desses valores morais, mas agora cansou deles e os abandonou.

Porém, o espírito-leão não consegue criar novos valores, valores que ele quer ter. Para fazer isso, esse espírito se transforma em espírito-criança.

O espírito-criança possui a inocência e a ausência de lembranças do passado. Logo, ela não é influenciada na sua criação de valores tais como ela deseja.

Com isso, finalmente o espírito consegue criar o seu próprio mundo.

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: O Espírito e As Metamorfoses

O Espírito

Não temos uma definição específica para aquilo que Nietzsche chama de espírito, mas tudo leva a crer que aquilo que ele chama de “espírito” nada mais é do que cada um de nós, um ser humano, uma pessoa, uma consciência.

Logo, nessa história das três metamorfoses, o espírito seria o exemplo de uma pessoa, de uma consciência que passou pela transformação.

O Camelo

O estágio do camelo é aquele em que normalmente começamos nossa vida moral. É o estágio em que recebemos os valores morais da nossa sociedade, da nossa cultura, da nossa religião, dos nossos pais. É quando aprendemos o que seria o certo e o errado, o justo e o injusto, o bem e o mal.

Porém, há uma questão aqui: Nietzsche dá a entender que o camelo gosta de suportar essas valores morais, tem orgulho e prazer em cumprir as regras que lhes são impostas.

Um espírito-camelo não reclama dos valores morais que tem, mesmo quando os considera difíceis e penosos. Ao contrário, fica feliz por ser capaz de suportar tamanho peso.

Como exemplos da nossa sociedade, podemos trazer questões como sexo antes do casamento, divórcio, emprego formal, fazer uma faculdade, não usar drogas, casar e ter filhos…. Esses são exemplos de valores culturais/morais que muitos brasileiros possuem. Somos educados a eles e, mesmo sendo difícil, buscamos respeitá-los. Quando conseguimos suportá-los, nos sentimos heróis e temos até uma sensação de prazer; quando falhamos, nos sentimos humilhados porque era para termos aguentado a carga.

Para um espírito-camelo, nada do que é pedido é exagerado. Tudo é para o nosso bem. Se não conseguimos cumprir as ordens morais solicitadas, a culpa é nossa.

Porém, chega uma hora que começa a cansar. Esse rigor moral e excesso de regras começa a nos desgastar a ponto de irmos ao isolamento (representado pelo deserto na história).

O deserto, aqui, simboliza nosso estado de frustração e sentimento de incompetência: “Como não consegui dar conta do que me foi pedido? Todos conseguem, porque eu não? Eu não mereço estar nesse meio social! Eu sou o errado da história!”. O limite é o estado de depressão pelo “fracasso” de nossa vida.

O Leão

Chega uma hora que gritamos “Basta!” para essa loucura que é viver uma série de regras sociais e valores morais os quais não damos conta e, quando começamos a pensar sobre isso, percebemos que não concordamos, não gostamos, nos fazem mal.

Depois desse grito de libertação, vem automaticamente a pergunta “De quem é a culpa?” e começamos a caçar àquele que nos impôs essa carga terrível. Geralmente, vamos mirar na nossa religião, nos nossos pais e na nossa sociedade porque, de uma certa forma, foram quem nos criaram e nos ensinaram essa “forma de viver”.

O dragão da história representa todo esse conjunto e seu nome “Você deve” significa todo o peso que essas personificações da moral coloca sobre nós: “você deve estudar”, “você deve trabalhar”, “você deve pagar impostos”, “você deve ser uma pessoa ‘direita'”, “você deve ser isso”, “você deve ser aquilo”. Obviamente, também aqui se inclui os “você não deve fazer isso” e “você não deve ser aquilo”.

O leão é nosso sentimento de revolta, de reclamação, de quebrar as regras, de se recusar a fazer o que nos pedem e se recusar a agir como esperam de nós. Nos tornamos o famoso “do contra”. O nosso novo certo é o contrário de tudo aquilo que nos ensinaram.

O leão representa apenas nosso brado de liberdade, nossa forma de dizer que cansamos de agir de um jeito o qual não gostamos e que não nos representa. Porém, se as vozes externas nos questionam “O que você quer ser? O que você quer fazer?” não sabemos a resposta.

Geralmente, esse “momento-leão” aparece na adolescência e reaparece na tal da crise dos 40 anos. É um momento em que “desafiamos o sistema” porque estamos cansados e exaustos dele. Sentimos que aquilo que vivemos e fazemos não se relaciona com nossos ser. Porém, ainda não sabemos dizer o que queremos fazer de nossas vidas ou como queremos conduzi-la.

O leão diz “Eu quero”, mas não saber dizer o que ele quer.

A Criança

O espírito-criança representa o sujeito que consegue responder à pergunta “O que você quer?”.

A criança é aquela que não foi ainda “contaminada” pelos valores antigos e tradicionais. Ao mesmo tempo, ela está em uma fase de descoberta, curiosidade e criação do seu próprio conceito de mundo.

A criança é capaz de saber o que é bom ou ruim para ela, o que ela considera certo ou errado fazer. Porém, normalmente, ela vai abandonando essas noções para se adequar às expectativas do mundo em que vive. Ela pode, por exemplo, querer usar um tipo de roupa que lhe agrada ou até ficar pelada porque está calor, mas é obrigada a colocar uma roupa porque não pode ficar nua na frente dos outros e essa roupa precisa refletir algum padrão cultural daquela sociedade.

Agora, imagine uma criança que nunca foi tolhida e sempre pode tomar suas decisões conforme suas necessidades e vontades. Essa seria a criança mais feliz do mundo para Nietzsche porque viveria no mundo que ela construiu.

Obviamente, não podemos voltar a ser crianças, mas podemos agir como uma se nos esforçarmos. O desafio aqui é abandonar todos os valores que aprendemos e internalizamos até então e recomeçar do zero, criando valores que nos representam, que nos digam algo, que façam sentido para nossa vida.

Vale destacar que, assim como uma criança agiria, os novos valores devem dizer “sim” à vida. Logo, todos os valores devem valorizar o viver e a liberdade. Sendo assim, alguns dos novos valores ainda serão semelhantes aos antigos valores, como a máxima “não matar”.

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Cultura Pop

Um filme que, na hora em que vi, me lembrou das metamorfoses de Nietzsche foi Coringa (2019).

Na história, Arthur Fleck era constantemente humilhado pela sociedade em que vivia e aceitava isso como se as coisas tivessem que ser daquele jeito (camelo). Porém, certo dia finalmente se revolta com a situação e começa a agir contra aquilo e aqueles que o tinham deixado daquele jeito ou, de certa forma, permitido que tudo o que ele viveu ocorresse (leão). No ápice de tudo, após ter colocado para fora toda a sua raiva, ele se redescobre e se refaz, criando um novo eu, alheio a tudo o que viveu e abraçando tudo aquilo que ele desejava (criança).

Para quem já viu ou pretende ver o filme, é óbvio que os novos valores propostos pelo agora Coringa não são exemplos a serem seguidos pelas pessoas em nossa sociedade real. O filme é ficção e deve ser entendido como metáfora, alegoria dessa atitude de agir de uma forma totalmente livre e inesperada, ignorando toda a moralidade prévia, tradicional que recebemos.

Para mais detalhes sobre essa comparação entre o filme Coringa e as metamorfoses do espírito, recomendo: Uma Reflexão sobre Coringa: A Metamorfose do Palhaço Nietzschiano.

As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Conclusão

Nietzsche não quer, com sua proposta de mudança do espírito humano, transformar a sociedade imoral. Ao contrário, ele quer, no fim das contas, criar um sociedade com valores morais que estejam adequados às pessoas. A diferença é que, em vez de você seguir valores pré-estabelecidos, você criará os seus valores. E esses valores devem te deixar livre assim como devem respeitar a liberdade dos outros. A proposta é que todos se sintam bem em viver em sociedade, que ninguém se sinta oprimido por agir de uma forma que não suporta ou simplesmente não quer.

E aí? Gostou desse artigo descomplicado sobre as três metamorfoses do espírito? Compartilha! Quer um artigo descomplicado sobre outra teoria filosófica presente em Assim falou Zaratustra? Entra em contato comigo dizendo qual gostaria de ver aqui! Alguma parte ficou confusa ou gostaria de complementar a explicação? Comenta!

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As Três Metamorfoses do Espírito Descomplicada: Referências

GONÇALVES, Rafael. Nietzsche e as três metamorfoses do espírito. In: Medium. Acessado em 01 nov. 2023.

KRETSCH, Marcelo. Zaratustra e as Três Metamorfoses do Espírito. In: Viés Filosófico. Acessado em 01 nov. 2023.

NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Hemus editora, 1977.

________________. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. São Paulo: Abril Cultural, 1983 (Os Pensadores).

PORFÍRIO, Francisco. Friedrich Nietzsche. In: Mundo Educação. Acessado em 01 nov. 2023.

TRINDADE, Rafael. Nietzsche – três metamorfoses da liberdade. In: Razão Inadequada. Acessado em 01 nov. 2023.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.