Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre o filme Adão Negro. Nessa superaventura, o herói da fictícia Kahndaq é libertado no presente para ajudar novamente seus cidadãos oprimidos; porém, precisará antes lidar com um grupo de heróis americanos que não querem alguém com superpoderes descontrolados. Na reflexão, trabalharei dois temas muito relevantes nos dias de hoje e que estão presentes no filme: o uso legítimo da violência e a existência de governantes pseudo-heróis. Não teremos spoilers das tramas principais do filme! Vamos lá!
Sobre Adão Negro (SEM Spoilers)
Adão Negro é um filme de superaventura do gênero ação lançado em 2022. Esse filme pertence ao Universo Estendido DC (DCEU em inglês), que seria o universo principal de filmes da DC de super-heróis. A história conta a origem do personagem Adão Negro, que começou como um vilão de Shazam, mas agora está mais para um anti-herói.
Em 2600 A.C., o povo de Kahndaq (um país árabe fictício localizado na África) era escravizado por um rei tirano chamado Ahk-Ton.
Uma criança kahndaquiana resolveu incitar o povo a lutar contra essa opressão e foi condenada à morte. Porém, antes que o crime ocorresse, o misterioso Conselho dos Bruxos (um grupo de magos poderosos) resolve dar ao jovem os poderes de SHAZAM (a resistência de Shu; a velocidade de Heru; a força de Amon; a sabedoria de Zehuti; o poder de Aton; e a coragem de Mehen) para que ele se tornasse o campeão de Kahndaq e protegesse seu povo, lutando contra qualquer tirania.
O campeão faz o seu trabalho, mas, no final, o palácio real é destruído e o campeão desaparece em meio às ruínas.
Passam-se quase cinco mil anos e estamos nos dias atuais. Kahndaq agora é um país pobre e controlado por um grupo paramilitar chamado de Intergangue. Um grupo de kahndaquianos rebeldes, que luta pela liberdade de seu povo, encontra os escombros da antiga Kahndaq e pedem ajuda ao antigo protetor que magicamente reaparece e começa a lidar com os malfeitores de uma forma eficiente e… fatal.
O ressurgimento desse ser superpoderoso acende o alerta vermelho no governo dos EUA, que pede à Sociedade da Justiça da América (um grupo de super-heróis que lutam ao lado do governo americano) para deter e controlar essa “ameaça”. A Sociedade da Justiça aceita a missão e parte para Kahndaq.
Agora, Adão Negro precisa lidar ao mesmo tempo com os heróis da Sociedade da Justiça – que querem pará-lo a qualquer custo – e a Intergangue – que está oprimindo o povo kahndaquiano.
Será que Adão Negro conseguirá proteger o seu povo e provar que não é uma ameaça? Descubra em: Adão Negro na HBO Max.
Reflexão sobre Adão Negro: Quem tem o Direito de Agir com Violência?
Quando Adão Negro ressurge, ele não tem pudor em matar e destruir todos os integrantes da Intergangue que estavam lhe importunando e ameaçando o grupo de kahndaquianos que lhe despertaram.
Enquanto ele fazia isso, o governo dos EUA mandava uma equipe de heróis para parar Adão Negro porque este estava agindo por conta própria e usando da violência sem uma autorização para tal; sendo, assim, uma ameaça.
Monopólio da Violência
O sociólogo Max Weber cunhou o termo “Monopólio da Violência” para designar uma das características do Estado moderno. Para o pensador, apenas o Estado deve possui o direito de usar legitimamente da violência para proteger seus cidadãos.
Na lógica de Weber, é impossível o funcionamento de um Estado em que mais de um agente possa atuar com violência para resolver conflitos internos ou externos porque, ocasionalmente, eles entrariam em choque. Além disso, se é permitido o uso da violência por qualquer um, não existiria segurança nessa sociedade.
Teoricamente, o uso da violência pelo Estado só é feito em último caso e para os fins de proteção dos interesses dos seus cidadãos. Por isso, seria legítimo.
Obviamente, o Estado é uma instituição social e, por isso, não tem um corpo. Logo, são pessoas que aplicam essa violência quando necessário. Porém, elas aplicam à serviço do Estado e com a autorização do Estado.
Por exemplo, um policial só poderia agir com violência enquanto está de serviço. E, da mesma forma, a constituição brasileira permite o uso da violência como último recurso para legítima autodefesa, defesa de terceiros e/ou seus bens.
EUA x Kahndaq
Adão Negro estava agindo por conta própria supostamente protegendo o povo kahndaquiano da Intergangue. Mas quem, naquele momento, lhe autorizava a fazer tal coisa? A princípio, não o governo – que parece ser controlado ou estar do lado de Intergangue.
Os EUA, que gostam de se meter em tudo, foi querer resolver o problema e parar Adão Negro. Curiosamente, os membros da Sociedade da Justiça não hesitam em usar da violência quando veem que não convencerão o Campeão de Kahndaq a se render pacificamente.
Mas calma aí! Os EUA estavam em outro país soberano! Então, aparentemente, a Sociedade da Justiça não tinha legitimidade para usar da violência! Olha que curioso: um grupo ilegítimo querendo ditar regra moral aos outros…
Justiça com as Próprias Mãos
Aparentemente, o que vemos é alguém buscando fazer a famosa “justiça com as próprias mãos”. E por que faz isso? Porque não existe mais esperança no sistema governamental do Estado.
O governo de Kahndaq claramente não estava agindo em prol de seu povo, precisando seus cidadãos lutarem por conta própria. Nessa luta, eles conseguiram despertar Adão Negro, que voltou a cumprir sua missão de proteger o povo oprimido.
Será que Adão Negro realmente não tinha legitimidade para fazer o que fazia? Acho que ele tinha sim essa legitimidade, ele a tinha porque o próprio povo deu essa legitimidade para ele quando o viram ressurgir e punir os malfeitores.
O filósofo John Locke já havia dito que dentre os diretos naturais do ser humano existe a liberdade e, para mantê-la, o povo pode usar do seu direito de resistência para lutar contra um Estado opressor.
Logo, Adão Negro estava legitimado pela própria natureza humana do povo de Kahndaq, graças ao seu direito de lutar pela própria vida e pela própria liberdade.
Se o governo de Kahndaq não representava mais os interesses dos kahndaquiano, Adão Negro estava cumprindo esse papel e a Sociedade de Justiça (e o governo americano) não tinha nada que se meter onde não foi legitimamente chamado…
Violência Exagerada
Que Adão Negro podia usar legitimamente da violência para proteger seu povo, acho que isso ficou claro. Agora, será que ele precisava de fato agir dessa forma ou, melhor, agir da forma demasiadamente violenta com que agiu? Isso já é um outro problema e eu acho que a resposta é: não.
Como um ser tão poderoso quando o próprio super-homem, Adão Negro não precisava sair matando todos da Intergangue nem destruindo tudo pelo caminho. Ele não era afetado por tiros! Para quê matar – e ainda com requintes de crueldade – todos aqueles soldados que, talvez, nem quisessem estar lá de fato.
Esse é o problema de a legitimidade da violência ser entregue a uma pessoa e não a uma instituição: é mais fácil que uma pessoa se corrompa do que um grupo delas. E eu nem estou dizendo que Adão Negro é mau, só que ele se deixa levar muito facilmente pela explosão da batalha e adrenalina do momento, tendo dificuldades de se controlar.
Por isso, por mais que no filme em questão, fez sentido apoiar a ação do Adão Negro, não podemos defender que ele agiu da melhor forma e nem que sua atitude deve ser o exemplo para nossas sociedades reais.
O melhor ainda é deixar o “Monopólio da Violência” nas mãos do Estado ao mesmo tempo que cuidamos para que o Estado não se corrompa e pare de cuidar do interesse público para cuidar do interesse privado de seus líderes.
Reflexão sobre Adão Negro: O Povo Oprimido e a Eterna Busca por seus Heróis
Campeão de Kahndaq
É muito interessante o fato de Adão Negro ser referido oficialmente durante vários momentos do filme como o “Campeão de Kahndaq”. Essa utilização figurada, não muito comum no dia a dia, diz que campeão é o defensor de algo ou alguém, aquele que luta por uma causa.
Se pararmos para pensar, essa designação faz todo o sentido. O poder de Shazam só foi dada pelo Conselho dos Bruxos para ser usado em prol do povo kahndaquiano e é isso que Adão Negro estava fazendo (mesmo que seja questionável seus métodos empregados).
Mas porque usar o termo “Campeão de Kahndaq” e não o que seria mais comum hoje em dia “Herói de Kahndaq”? Provavelmente, porque a palavra “herói” significa outra coisa…
O Conceito de Herói
O termo herói vem do grego e era dado para homens que foram divinizados (literalmente). Acontece que os deuses gregos não eram perfeitos, eles eram “apenas” imortais e superpoderosos. Os deuses gregos eram cheios de defeitos tais quais os seres humanos. A noção de Deus como um ser perfeito surgiu com o judaísmo e se consolidou no ocidente com o cristianismo. O Deus judaico-cristão é perfeito.
Acabou que o termo herói, quando continuou a ser utilizado para figuras de destaque na sociedade, manteve em um sentido figurado a noção de divinização, mas sob uma perspectiva de um Deus perfeito.
Em outras palavras, hoje, quando se chama alguém de herói, pensa-se automaticamente que essa pessoa é dotada de todas as virtudes possíveis e imagináveis, praticamente beirando a perfeição. E isso é um grande problema, especialmente quando se pensa em um “herói do povo”…
O Problema dos Heróis do Povo da Vida Real
Ao longo da história, nos mais diferentes povos, já surgiram (e ainda surgem ou estão atuando) figuras consideradas “heróis do povo”. São figuras que, por algum motivo, ganharam um imenso destaque e, também, a crença de boa parte da população de que eles resolveriam todos os problemas sociais daquela gente.
Só que, na vida real, nunca uma pessoa sozinha conseguirá resolver todos os problemas de uma sociedade… e é aí que está o problema de continuarmos com essa crença equivocada. NÃO PODEMOS ACREDITAR em heróis do povo. Não podemos “depositar todas as nossas fichas” na figura de uma pessoa acreditando que ela conseguirá resolver todos os problemas de todas as pessoas! Isso é fantasia!
Diferentemente da mitologia grega, os nossos “heróis” morrem; e, diferentemente da crença popular, os nossos “heróis” são passíveis de corrupção, falhas, atitudes más e egoístas. E isso gera dois problemas:
1. Se o “herói” escolhido realmente for bom, um dia ele irá morrer e não existe garantia que ele deixará outro “herói” como ele no poder. Dessa forma, tudo o que foi conquistado e construído pode facilmente se perder porque não existirá mais aquela figura mística que garantia a bondade, a esperança e a justiça social;
2. Se o “herói” escolhido não for tão bom quanto se acreditava (e acabar se corrompendo ou se revelando um vilão disfarçado), ele causará incomensuráveis problemas nessa sociedade porque agirá com uma legitimidade de seguidores cegos à realidade e poderá fazer o que quiser sem ter pessoas suficientes para questionar suas atitudes nefastas. Lembrem, por exemplo, que Hitler e Mussolini eram heróis, respectivamente, da Alemanha nazista e da Itália fascista.
Adão Negro Tirano
Nos quadrinhos, o personagem Adão Negro é controverso porque, durante alguns momentos, ele se torna o líder de Kahndaq de forma tirânica, mas fazendo o bem social para aquele povo. Ou seja, ele cumpria sua função de lutar pelo povo e cuidar socialmente dele, mas não se importava em subjugar quem lhe fizesse oposição, mesmo que essa pessoa também quisesse o bem de todos por outros meios.
No filme, Adão Negro não chega a ser um tirano, mas além dos excessos de violência já mencionados, também ocorrem outras situações (que não irei mencionar para não dar spoiler) que deixam claro que dar o título de “herói do povo” para Adão Negro seria um equívoco.
A Fraqueza da Democracia e a Necessidade da Ajuda Global
Kahndaq é retratado como um país pobre e, como já mencionado, explorado e oprimido.
Existe um problema muito sério que já ocorreu (e ainda ocorre) com países cujos cidadãos estão se sentido abandonados pelas suas instituições sociais (seja em países ricos ou pobres): a crença (ou retorno da crença) que os problemas sociais serão resolvidos com a chegada ao poder desses líderes “pseudo-heróis”, cuja problemática já expliquei.
Mas como resolver isso? De duas formas: a (re)valorização dos poderes políticos do povo e a ajuda desinteressada do estrangeiro. E o filme destaca essas duas soluções:
a) Sobre o povo se sentir parte integrante e atuante da sociedade, é mostrando um momento em que o povo se une aos “mocinhos” para lutar contra o vilão.
b) Já com relação a atual falta de ajuda desinteressada do estrangeiro, tem uma cena em que os kahndaquiano criticam as investidas da Sociedade da Justiça contra o Adão Negro dizendo algo como “cadê vocês quando estávamos sendo oprimidos? Vocês só aparecem agora que finalmente temos um herói só nosso?”.
Precisamos de Protetores
O filme Adão Negro termina dizendo que não precisamos de heróis, mas de protetores. E isso é muito significativo.
O protetor é aquele que protege, aquele que dá proteção. A proteção é um movimento passivo, é um movimento reativo de defesa e não de ataque.
Os protetores são aqueles que resguardam, dão segurança às pessoas; mas não são aqueles que agem pelas pessoas.
Logo, a ação deve partir do próprio povo, é o povo que precisa lugar para melhorar a sua condição social. O povo não pode contar com heróis, querendo delegar-lhes o trabalho. Isso está errado.
Ao contrário, o povo precisa contar com protetores, com aqueles que irão proteger as pessoas quando estas forem injustiçadas.
Um bom líder de governo não é aquele que está disposto a agir pelo povo, mas aquele que está disposto a proteger o seu povo, mantendo, assim, o protagonismo dos cidadãos.
Reflexão sobre Adão Negro: Conclusão
Concluindo essa reflexão sobre o filme Adão Negro, pudemos observar que esse filme vai muito além de mera pancadaria e efeitos visuais. Esse filme traz uma mensagem forte e uma crítica severa a praticamente todos os povos – ou porque estão na posição de crença injustificada em seus heróis, ou porque estão deixando de ajudar países que estão sofrendo com problemas sociais que acabam causando no povo esse tipo de crença. E agora? Qual será sua atitude após essa reflexão sobre Adão Negro?
E aí? Curtiu essa reflexão sobre Adão Negro? Compartilha! Tem algo a acrescentar a essa reflexão sobre Adão Negro? Comenta! Quer uma reflexão sobre outro filme do Universo Estendido DC? Entra em contato!
Até a próxima e tenham uma boa viagem!
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