Uma reflexão sobre o Olhar Háptico na Arte

Uma reflexão sobre o Olhar Háptico na Arte

Uma reflexão sobre o Olhar Háptico na Arte

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o olhar háptico na arte. Iremos trabalhar conjuntamente alguns conceitos de Deleuze, Bachelard e Rielg. Esse foi um tema que estudei no meu mestrado, e é um texto mais denso, inclusive com algumas citações em francês. No texto, irei explorar a interpretação que Deleuze deu para a pintura de Pollock e como essa interpretação deu uma valorização à mão do artista em vez de seus olhos. Mostrarei que essa valorização da mão também está presente em Bachelard e foi conceituada por Riegl. Veremos, no final, como essas características são resultado de uma vontade do ser humano de se conectar com a natureza.

O trabalho de Pollock segundo Deleuze

Deleuze, no seu curso sobre pintura ‘La peinture et la question des concepts’ (curso 16 em 28/04/1981 – 2° transcrição: Ali Ibrahim), ao falar de Pollock, levanta um debate sobre a autonomia na criação artística de uma pintura. Segundo Deleuze, é possível notar nas obras de Pollock que a mão do pintor se libertou do jugo do olho ao produzir suas telas. Essa é uma novidade! As linhas traçadas pelo pintor não obedecem a um caráter imposto pelo olhar, mas a mão se movimenta livre na tela, produzindo, dando à pintura a sensação de movimento / ação.

Je reviens à mon histoire l’oeil et la main, vous avez senti un problème, à mon avis je dirais… et puis ça nous permettrait d’aller très vite, mais on va finir très vite. Je dirais et bien oui, c’est exactement ça la ligne manuelle, c’est exactement ça: la main libérée de l’oeil, tant que la main reste soumise à l’oeil, elle fait des contours. La ligne reste ou organique, ou géométrique, suivant que c’est l’oeil sensible. Quand les yeux s’effondrent, quand le chaos s’installe devant les yeux, la puissance manuelle se déchaîne, à ce moment là, mais la main est animée d’une volonté étrangère qui va s’imposer à l’oeil au lieu de suivre l’oeil (DELEUZE, 1981).

Essa conquista de liberdade alcançada pela mão seria também um símbolo do homem moderno. O homem moderno é o homem manual, que trabalha. Segundo Deleuze, a mão que produz o quadro, se utilizando de novos instrumentos de trabalho: seringa, bisnaga, bastão, brocha, esponja, abandona os tradicionais cavalete e pincel, e ofende a visão.

L’Action Painting a un avantage, cette expression c’est que ça accuse le caractère manuel de cette peinture, ça ne passera plus par le chevalet ou le pinceau, ça passera par la seringue à pâtisserie et par le sol, par la toile sur le sol, ça ce sont des valeurs tactiles, par le bâton, par la brosse, par l’éponge par tout ce que vous voulez, et puis le peintre sera saisi d’une espèce de frénésie, de frénésie tactile, de frénésie manuelle, avant tout, les yeux ne pourront pas suivre, d’où l’intérêt des films où l’on voit Pollock peindre puisque en effet les yeux n’arrivent pas à suivre et la peinture jetée, le jet est tactile, le fameux jet de peinture de Pollock, tout ça, ce ne sont pas les yeux qui commandent, mais c’est la main, la main a trouvé son expression : la ligne que les yeux ne peuvent plus suivre. Bon, la peinture doit devenir une offense aux yeux, en quel sens? Elle doit libérer l’homme moderne, vous voyez dans quel sens aussi, on essaie de tirer une métaphysique de tout ça (DELEUZE, op. cit.).

O expressionismo abstrato de Pollock foi tão revolucionário, que alguns críticos acabaram vendo em seu trabalho o oposto do pretendido: em vez de identificar nas pinturas a instituição de um mundo manual, viu-se a instituição de um mundo visual puro. “Or Greenberg définit avec insistance cet expressionnisme abstrait de Pollock, de Morris Louis, tout ça il le définit comme l’instauration d’un monde optique pur” (DELEUZE, op. cit.). Bom, como seria possível essa interpretação tão dicotômica? Como um artista que valorizou a mão sobre o olhar pode ser interpretado como alguém que pintou um mundo que exalta a visão? Esse questionamento pode ser esclarecido quando aceitamos um novo tipo de olhar, um olhar que não é o tradicional óptico, que é distante e observador; mas sim um olhar háptico, que é próximo e tátil, um olhar que atinge o toque!

Uma reflexão sobre o Olhar Háptico na Arte

Para nossa reflexão sobre o “olhar háptico” é preciso mencionar que esse termo foi desenvolvido pelo historiador da arte Aloïs Riegl, no final do século XX, para designar algumas tradições na história da arte (REIS FILHO, 2012, p. 79). Sua intenção era justamente fazer a distinção entre esse tipo de olhar para o olhar óptico, que podemos considerar como o tradicional. Uma boa definição de olhar háptico, assim como a explicação da sua distinção do olhar óptico seria:

Riegl define a visualidade háptica como aquela que solicita o espectador não apenas através dos olhos, mas, pela sua enorme proximidade, também ao longo da pele. Ele contrapõe a visualidade háptica a uma visualidade óptica. Mostra que enquanto esta última vê as coisas de uma grande distância, tornando possível distinguir claramente suas figuras num espaço profundo; enquanto ela depende de uma clara separação entre o sujeito observador e seus objetos, requerendo distância e um centro, o olhar háptico não possui centralidade. Ele tende a se mover sobre a superfície de seus objetos, ao invés de mergulhar na profundidade ilusionística. Está mais inclinado a se mover do que a focar, opera não tanto para distinguir as formas quanto para discernir texturas (Ibid., p. 79-80).

Quando vemos essa definição, automaticamente somos remetidos à lembrança das palavras de Deleuze sobre a arte de Pollock (e dos chamados expressionistas abstratos) que haviam abandonado o cavalete, que haviam colocados suas telas no chão e pintavam sem se preocupar com as margens do quadro. Suas pinturas não estavam mais presas às molduras, não tinham mais os grilhões que lhe indicavam seu início e fim ou exigiam uma definição, a arte desses pintores estava livre para explorar as texturas, deslizando pelas camadas, despreocupada em ter que mostrar uma figura. Através da mão livre da opressão do olhar, eles [os pintores] conseguiram submeter o olhar a ter uma visão que tocava.

Nesse universo [da visualidade háptica], as imagens apontam quase sempre para um limite. Há sempre algo que não se vê ou que não se vê completamente. Há sempre alguma coisa que permanece fora da imagem, que se mantém invisível, misteriosa, ainda por vir. Aqui, os objetos da visão são mais sugeridos e esboçados do que propriamente representados. Muitas das vezes, eles são postos em questão, nos aparecendo estranhos, transformados, desfigurados. Seja num caso ou em outro, o espectador é encorajado a se envolver de modo mais crítico com a imagem. Ele é convidado a abandonar uma postura passiva e a participar na construção imaginativa da imagem, a preencher suas lacunas (Ibid., p. 87).

Bachelard e a materialidade na arte

Essa crítica ao ocularismo, ou melhor, ao excesso do ocularismo no mundo moderno foi tema de vários pensadores no século XX. Dentre eles, citamos Gaston Bachelard, que dedicou parte do seu desenvolvimento filosófico a estética, dando foco especialmente a compreensão da imagem e da imaginação. Seu trabalho poético teve início exatamente com a busca em interpretar os quatro elementos primordiais – fogo, água, ar e terra – pois os vê como arquétipos que estão enraizados no inconsciente humano e as imagens que criamos a partir das nossas experiências de vida são sublimação desses arquétipos (BARBOSA, 2004, p. 43). O filósofo percebe nesses elementos, a importância da substância para a arte, que alimenta toda poética. É nesse trabalho que ele criou uma distinção de tipos de imaginação.

[Bachelard] Afirma que existem dois tipos de imaginação, uma que dá vida à causa formal – imaginação formal – e outra que dá vida à causa material – imaginação material. A imaginação formal se detém nas arestas exteriores do objeto, enquanto a imaginação material tem como meta o domínio da intimidade mesma da matéria, é impulsionada por uma vontade de penetração da matéria, de materializar o imaginário. A imaginação material é, para Bachelard, dinâmica e funciona como acelerador do psiquismo, provocando um fluxo de imagens novas (Ibid., p. 44-45).

O estilo poético de Bachelard pode dar a impressão que suas palavras, ao falar de materialidade e imaginação, não significavam a literalidade do contato com uma matéria real (no sentido físico). Entretanto, o que faz esse filósofo se relacionar com as análises estéticas de Deleuze é exatamente o contrário: Bachelard vê no manuseio da matéria através do contato com a mão a possibilidade de se ter, segundo ele, a verdadeira imaginação:

A mão trabalhadora, a mão animada pelos devaneios do trabalho, envolve-se. Vai impor à matéria pegajosa um devir de firmeza, segue o esquema temporal das ações que impõem um progresso. Isso porque ela só pensa apertando, sovando, estando ativa (BACHELARD, 1991, p. 94, grifos do autor).

Para ele, devemos levar em consideração esse aspecto da imaginação porque ela surge do embate com o mundo concreto e material. Nesse ponto, Bachelard conquista o poder criador da imaginação, mostrando sua passagem de mera cópia do real para criadora de realidade; tudo isso conquistado em paralelo com uma força de vontade vital do homem trabalhador. “É mão de trabalhador, sim, de artesão, sim – mas feliz porque cria na liberdade de sua vontade desatada pela imaginação” (PESSANHA, 1994, p. xxii).

Uma reflexão sobre o Olhar Háptico na Arte: conclusão

Vemos assim, uma íntima ligação de pensamento entre Deleuze, Riegl e Bachelard, que viram, na arte e através da arte, a conquista da autonomia da mão. Essa atitude não é coincidência, ela está relacionada com uma necessidade do homem em restabelecer uma relação mais íntima e profunda com a natureza, com o mundo. É a recuperação da sensação de pertencimento a um todo. O homem decide sair do posto de mero observador que ocupava a longos séculos e volta suas ações a querer ser um com o mundo; e a mão o instrumento reintegrante. É ela que dará a possibilidade do homem voltar a tocar o mundo.

(…) parece-nos que a visualidade háptica está ligada àquilo que Hans Ulrich Gumbrecht chamou desejo de presença, isto é, a vontade do homem contemporâneo de restabelecer um contato mais sensível e corporizado com os objetos e com as imagens em si mesmas (GRUBRECHT, 2004). Nessa perspectiva, a visualidade háptica seria responsável por restituir – numa cultura predominantemente hermenêutica e cartesiana como a nossa – formas de comunicação mais corpóreas e imediatas (não-mediadas), experiências nas quais podemos experimentar não apenas o domínio da representação e do simbólico, mas a própria presença das coisas, a materialidade dos objetos e dos meios, o poder criativo da representação não-figurativa – das linhas e das forças (o invisível, o impalpável, o que está em devir) e não somente das formas (estáveis) (REIS FILHO, 2012, p. 78).

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

Referências

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios da vontade: ensaio sobre a imaginação das forças. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1991.

BARBOSA, E. e BULCÃO, M. Pedagogia da razão, pedagogia da imaginação, Petrópolis: Ed. Vozes, 2004.

DELEUZE, G. La peinture et la question des concepts; cours 16 du 28/04/1981 – 2 transcription: Ali Ibrahim. La voix de Gilles Deleuze em ligne, Paris. Disponível em: <http://www2.univ-paris8.fr/deleuze/article.php3?id_article=47> Acesso em: 23 set. 2014.

PESSANHA, J. A. M. Bachelard: as asas da imaginação (Prefácio). In: BACHELARD, G. O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha et al. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. 4.ed.

REIS FILHO, O. G. dos. Reconfigurações do Olhar – O Háptico na Cultura Visual Contemporânea. Visualidades. Goiânia: Universidade Federal de Goiânia, n. 2, p. 75-89, 2012.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.