Reflexão sobre Arcane: Traumas de Infância e Luta de Classes

Reflexão sobre Arcane: Traumas de Infância e Luta de Classes

Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre a série animada Arcane. Nessa animação, acompanhamos as histórias de duas irmãs separadas na infância e de dois jovens que querem mudar o mundo com magia. Paralelamente a isso, acompanhamos um intenso jogo político entre o centro da cidade e sua periferia. Na reflexão de hoje, trabalharei os impactos de um trauma de infância em uma pessoa e as questões da luta de classes. Atenção: teremos grandes spoilers da animação! Vamos lá!

Sobre Arcane (com SPOILERS)

Arcane é uma série animada da Netflix que estreou em 2021. Ela é ambientada em Runeterra, o mundo da franquia de jogos League of Legends (mais conhecido como LoL). Contudo, esse fato não é impeditivo de quem não joga apreciar a série porque ela é autoexplicativa e independente. Quem joga, vai curtir as referências; quem não joga, poderá se empolgar e querer controlar os personagens principais no jogo.

A série começa com duas irmãs (Vi e Powder) recentemente órfãs, após uma guerra civil entre o centro da cidade-estado Piltover e sua subferia (é a periferia da cidade, que fica no subsolo), que se autodenomina Zaun, a qual quer a sua independência. A guerra acaba com um acordo de cessar fogo sem vencedores.

Passam-se uns anos e as meninas crescem nas vielas de Zaun. Elas agora têm um grupo com mais dois amigos, e eles praticam pequenos furtos. Dessa vez, eles invadem o apartamento de um inventor que estava mexendo com magia e o prédio acaba explodindo por uma desatenção de Powder, gerando uma perseguição dos defensores (a polícia de Piltover) aos delinquentes. Esse incidente acaba abalando o acordo de paz que existia entre as duas regiões.

Em Zaun, descobrimos que dois irmãos (Vander e Silco) lideravam o levante na última guerra civil. Porém, eles brigaram e se separaram porque Vander aceitou a paz, enquanto Silco queria continuar a disputa. Agora, existe uma animosidade entre eles, cada um com um grupo próprio (os que aceitam o acordo e os que querem a separação).

No meio dos conflitos decorrentes ainda do roubo, Silco aproveita o momento e captura Vander. Vi e seu grupo tentam o resgate sem Powder. Eles estavam quase conseguindo quando Powder chega sem avisar e tenta ajudar seu grupo. A ação de Powder dá errado e, no final, do grupo de resgate só sobrevive Vi e Powder (também morrendo Vander). Vi então briga com Powder e a abandona.

Paralelamente a tudo isso, no centro de Piltover, acompanhamos a história de Jayce e Viktor. Jayce é um jovem cientista de família humilde que descobriu o poder da magia e quer combiná-la com ciência para melhorar o mundo. Viktor é um assistente do reitor da academia de ciências que possui uma doença degenerativa e quer, além de encontrar a cura para si, deixar sua marca na sociedade científica. Ambos se juntam e conseguem criar um mecanismo mágico estável: o hextec.

Passam-se uns 10 anos mais ou menos. Piltover é agora uma cidade ainda mais próspera graças aos avanços no transporte desenvolvidos com base no hextec. Já Zaun se tornou um lugar ainda mais marginal porque Silco agora é o líder e ele alimenta toda uma cadeia de drogas que envolve a região (seja com usuários ou trabalhadores).

Descobrimos que Powder agora é Jinx, uma menina perturbada mentalmente que foi acolhida por Silco. Em um dos seus frenesis, Jinx ataca Pitlover durante sua exposição anual e rouba uma das gemas mágicas de Jayce e Viktor. Isso reacende a animosidade entre as regiões porque essa gema pode se tornar uma arma de grande poder destrutivo se mal-empregada.

Para saberem como termina essa história, vejam a animação ou continuem lendo essa reflexão sobre Arcane!

Reflexão sobre Arcane: As Marcas de um Trauma de Infância

Abro essa reflexão sobre Arcane dizendo: Jynx nasceu de um trauma de infância de Powder!

Powder errou em desobedecer às ordens da irmã e ir até o covil de Silco tentar ajudar no resgate de Vander. Isso é inegável. Porém, a resposta ao erro traumatizou Powder. Na hora, ela percebeu a merda que fez, mas a forma como Vi a tratou e, no final, abandonou fez com que a já frágil Powder pirasse.

Não estou aqui culpando a Vi de tudo porque a Vi também era uma criança e teve um rompante emocional compreensível (e, como sabemos, ela logo se arrependeu – mas já era tarde demais). Mas acho importante trazer esse assunto para reflexão porque precisamos perceber como nossas atitudes podem traumatizar uma criança para sempre!

É muito comum alguém mais maduro (um adolescente, jovem, adulto ou idoso) ter a capacidade de compreender que frases como “eu te odeio”, “você não tem jeito”, “era melhor você não ter nascido” são formas extremas de desabafo que podem surgir em um momento de discussão ou situação de estresse, mas que não correspondem à realidade. Porém, o psicológico de uma criança ainda não está pronto para fazer essa dissociação. Por isso, frases como essas podem impactar profundamente uma criança. Elas traumatizam.

Normalmente, o que acaba acontecendo, é que essas frases e situações vividas, causam tanto impacto psicológico que são bloqueadas no inconsciente dessas crianças. Na maioria dos casos, esses traumas ficam lá, ocultos. O que muitas vezes não percebemos é que esses eventos influenciam totalmente quem a pessoa se torna, como ela age, como ela se comporta. Inclusive, podem até desencadear transtornos que em um primeiro momento não serão associados a um trauma oculto de infância. O pioneiro em perceber essas coisas foi Sigmund Freud, que fez uma brilhante análise da psique humana e percebeu que somos muito mais influenciados pelo nosso inconsciente irracional do que nosso consciente racional.

Dessa forma, devemos ter muito cuidado com aquilo que falamos e fazemos com nossas crianças, porque elas estão absorvendo tudo o que está ocorrendo, mesmo que um tempo depois ela possa não se lembrar mais.

Na série, Vi poderia ter repreendido Powder, mostrando novamente que coisas ruins podem ocorrer quando as pessoas não obedecem a regras. Porém, nada daquilo que ocorreu na intervenção de Powder poderia ter sido previsto, nem por ela nem pela Vi. Poderíamos, se aplicássemos um “juridiquês”, dizer que Powder teve culpa, mas não teve dolo (intenção). E, na nossa justiça, isso ameniza uma pena.

Powder já estava se culpando pela morte dos amigos e de Vander antes mesmo da reprimenda de Vi. Por isso, a atitude de Vi só reforçou ainda mais a sensação de culpa de Powder. 

No final, acabou que Silco a acolheu como uma menina que errou querendo fazer o bem. Assim como, em certo sentido, ele foi tratado.

Para piorar tudo, não só temos no futuro uma Jynx totalmente quebrada, paranoica e beirando a esquizofrenia, como também alguém que não aprendeu com seus erros porque ninguém a educou (só brigou). Foi por essa falta de educação, de compreender que nem sempre a ação é a melhor solução, que ela criou toda a confusão da feira e, no final da primeira temporada, jogou um míssil no conselho que estava prestes a aceitar a paz com Zaun.

Isso mostra como ações traumáticas na infância, como grandes agressões, surras ou castigos extremos não surtem efeito. Se surtissem Jynx não faria o que fez porque ela teria aprendido com sua eu infantil.

Dessa forma, fica a reflexão para tomarmos cuidado com a forma como lidamos com nossas crianças. Aquilo que não nos traumatiza, pode traumatizá-las. E as consequências podem ser muito ruins, não só para ela, mas para toda a sociedade.

Reflexão sobre Arcane: Piltover x Zaun / Os com Sorte x Os sem Sorte

No começo da série, sabemos que houve uma guerra. Não sabemos exatamente porque e quem estava lutando. Depois, descobrimos que foi um conflito civil, entre a região central da cidade de Piltover e sua subferia, autodenominada Zaun. Também descobrimos que foi feito um acordo, do qual parte de Zaun aceitou bem e parte aceitou mal.

Zaun busca a sua independência de Piltover. Não me ficou claro os motivos. Aparentemente, existe uma certa exploração do centro sobre a subferia. Fato é que o centro é próspero e a subferia está abandonada a própria sorte. Não vemos pobres em Piltover e não vemos ricos através de negócios lícitos em Zaun. Isso mostra muito claramente uma diferença social, de classes.

Assim como em nossa sociedade capitalista, existe a possibilidade de mobilidade social. Viktor veio da subferia, ele subiu de classe. Porém, ele é apenas uma exceção. Da mesma forma, existem pessoas de classe alta que nunca tiveram contato com a realidade dos pobres, como Catlyn (uma defensora, amiga de Jayce). Infelizmente, ela é a regra…

Porque não dar a independência a Zaun? O que esses pobres e criminosos têm a contribuir com Piltover? A princípio, não faz sentido manter Zaun unida a Piltover. Porém, se nos atentarmos a alguns detalhes, podemos deduzir. O maior exemplo, a meu ver, foi na cena em que Jayce e Viktor mostram para Heimerdinger (o reitor da universidade) seus inventos que iriam “ajudar” as pessoas de Zaun: uma manopla que facilitaria o carregamento de pedras, e um braço mecânico com laser para cortar coisas. Isso me mostrou que existe toda uma população de Zaun não mostrada na série que são os trabalhadores de baixa qualificação, a classe proletária, explorada.

Zaun é a fonte de mão de obra barata e desqualificada de Piltover. Possivelmente, é a fonte de alguns recursos naturais também. Zaun também é o depósito de lixo e dejetos do centro. Ou seja, Zaun é necessária porque é sobre ela que Piltover ser eleva. Sem Zaun, Piltover não consegue se sustentar tal como é.

É por ser explorada e, ao mesmo tempo, abandonada, que Zaun não quer mais fazer parte de Piltover. Ela quer sua liberdade, sua autodeterminação! Claro que, da forma como as coisas estavam, provavelmente Silco seria um líder tão ruim quanto ou até pior que o conselho. Mas esse fato não serve de desculpa para aquela população não ter o direito de buscar uma condição de vida mais digna.

O mais interessante foi Jayce dizer que queria ajudar as pessoas e nunca ter estado em Zaun para aprender sua realidade. A primeira vez que ele fez isso, foi para atacar a fábrica de Silco e brigar com os funcionários dela! Depois, ele ainda criou uma barricada na ponte, separando fisicamente os dois lados da cidade. Jayce chegou a cogitar criar armas para atacar Zaun e resolver o problema, sem nem se preocupar com as pessoas inocentes que poderia ferir nesse processo de “limpar” a região dos bandidos.

Se repararmos bem, a atitude de Jayce é muito semelhante ao que ocorre nas ações em comunidades pobres, normalmente afetadas pelo tráfico. As ações sempre são feitas pelo bem dos moradores, mas quem normalmente acaba morrendo, sendo feridos ou esculachados são os moradores trabalhadores, os inocentes que deveriam ser protegidos e resgatados da criminalidade.

Heimerdinger é outro caso interessante porque ele é um dos fundadores de Piltover e, da sua posição privilegiada no conselho, não conseguiu enxergar o caos que estava ocorrendo com Zaun. Ele, por mais nobres que pareciam suas palavras, nunca demostrou na série profundo conhecimento da realidade de Zaun. E olha que ele tinha tempo para isso já que parece ser imortal ou envelhecer muito lentamente!

Heimerdinger só foi ter contato com a realidade de Zaun quando ele foi expulso do conselho, quando ele foi retirado do seu lugar privilegiado e obrigado a ser alguém comum. Foi nesse momento que ele decidiu andar pelas ruas e acabou conhecendo Ekko (uma das pessoas que manteve o legado de Vander).

O caso dele é ligeiramente semelhante ao da Catlyn. Ela só foi conhecer a subferia porque estava atrás do ladrão da gema. Em um primeiro momento, ela demonstrava certo preconceito por aquelas pessoas. Porém, depois de conhecer Vi e conviver um tempo com os desamparados de Zaun, ela também se sensibilizou por eles.

Voltando a nossa realidade, se nós temos algum privilégio em nossas vidas, precisamos ser mais sensíveis com aqueles que padecem porque “não tiveram sorte” (como é dito da série).

Meus pais eram pobres e tiveram que lutar muito para crescer na vida. Eu já fui privilegiado, crescendo em uma classe média. Mas os relatos ouvidos de como eram suas vidas, me fez ver desde novo como é do “do outro lado”. Atualmente, continuo a saber como é “o outro lado” através dos meus alunos das escolas públicas.

Sei que não faço ainda o suficiente, mas tento fazer cada vez mais para que, em um futuro, não tenhamos lados e sejamos um só.

Reflexão sobre Arcane: Conclusão

Ao fim dessa reflexão sobre Arcane, percebemos que realmente existem traumas de infância, e que eles podem influenciar gravemente quem uma pessoa pode se tornar e até o impacto que ela pode causar negativamente em uma sociedade. Também vimos que um dos grandes problemas políticos atuais é a luta de classes entre os “com sorte” e os “sem sorte”, e que precisamos tentar ajudar da melhor forma possível a acabar com essa divisão social.

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Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.