Reflexão sobre The Promised Neverland: As (não) Opções da Vida

Reflexão sobre The Promised Neverland: As (não) Opções da Vida

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o anime The Promised Neverland (no original Yakusoku no Neverland). Essa é uma história curiosa sobre um grupo de órfãos os quais descobrem que na verdade eles estão sendo criados para alimentação de demônios. Agora, eles precisam fugir desse local. Contudo, a governanta da casa não vai ajudar. Nessa reflexão, vou falar um pouco do sempre constante dilema da liberdade ou não que temos em agir no mundo, explorando as características das duas governantas que aparecem no anime. Vamos ter um pouco de spoilers sobre a história na reflexão, mas nada que estrague as surpresas da anime. Vamos lá!

The Promised Neverland (SEM Spoilers)

The Promised Neverland (no original Yakusoku no Neverland) é um anime baseado no mangá de mesmo nome. O mangá foi lançado entre 2016 e 2020, e o anime já tem a primeira temporada concluída com previsão da segunda temporada estrear em 2021. O anime está disponível na Netflix.

A história se passa em um “orfanato” cheio de crianças e apenas uma governanta, responsável por tudo. As crianças possuem uma rotina de refeições, estudos e atividades ao ar livre. Elas possuem muita liberdade de ação na casa e no terreno, exceto uma coisa: elas não podem ir até o portão de saída e nem ultrapassar a cerca limítrofe do terreno.

Emma, Norman e Ray são as crianças mais velhas da casa e sempre estão ajudando a “mama” Isabella. Tudo ocorria de forma normal até que Conny, uma das crianças, foi adotada. Ela e a mama foram para o portão de saída, mas Conny esqueceu o seu coelhinho de pelúcia. Emma e Norman decidem correr até ela e entregar o brinquedo, mas são surpreendidos.

Conny está morta e surgem duas criaturas demoníacas conversando sobre a qualidade da mercadoria daquela plantação. A verdade vem à tona: aquilo não era um orfanato, mas uma criação de seres humanos para alimentação de demônios! Pior que isso, a sua “mama” está em conluio com os demônios, trabalhando para eles.

Emma e Norman tomam a decisão mais lógica: fugir. Assim, começa a elaboração de um plano para escapar daquele lugar. Naturalmente, a mudança no comportamento deles vai despertar a desconfiança de Isabella e as coisas não serão tão simples quanto as crianças achavam que seria…

Reflexão sobre The Promised Neverland: A Escolha das Mamães

O aspecto mais interessante do anime para mim, no que tange a uma reflexão sobre ele, foi o desenvolvimento dos personagens que fazem o papel de mamães. Durante o anime, somos apresentados a duas: Isabella e Krone.

Descobriremos que ambas eram do grupo de órfãos quando crianças. Por terem apresentado aptidões na gestão da casa e no cuidado com as crianças, receberam a oportunidade de escolherem entre virarem refeição de demônio ou se tornarem mamães e cuidarem de outras fazendas.

A primeira coisa que percebemos é que a liberdade de escolha dessas duas pré-adolescentes (porque a decisão foi tomada quando elas tinham por volta de 13 anos) se enquadra naquilo que a filosofia chama de liberdade situada. Martin Heidegger vai dizer que existem dois aspectos inseparáveis na existência humana: a facticidade e a transcendência. A facticidade corresponde àquilo que está determinado no ser humano, enquanto que a transcendência se refere à ação do ser humano para além daquilo que lhe determinam, dando um sentido para as suas escolhas.

Dito isso, é complicado julgar como má a decisão das duas meninas em escolherem serem mamães do que comida de demônio. Pense em você mesmo: você preferia morrer ou assumir uma função no grupo? Você pode até falar que morreria pela causa, mas não existe causa aqui. Elas não estavam lutando contra aquilo e nem viam possibilidade de lutar. Suas opções ela limitadas. Escolher viver é a reação mais natural e instintiva. Até mesmo racional. Podemos até pensar que elas queriam só ganhar um tempo para ver o que dava para ser feito, mas no final não tinha mesmo opção.

Eu me recordo de uma situação semelhante que ocorria durante a escravidão: muitos escravos ganhavam a opção de deixarem o trabalho duro para auxiliar os donos na administração dos demais escravos. Pensa as opções dele: ou eu trabalho até cansar e morrer, ou eu ajudo a administrar isso de uma forma mais confortável. Existe realmente escolha? Claro que não! O que não estaria certo é esse escravo promovido ficar maltratando os demais, como se ele fosse superior. Mas não é esse o caso desse exemplo. E nem o que ocorreu na série: as mamães cuidavam muito bem das crianças.

O que irei trabalhar nos próximos tópicos e a transcendência de cada uma dessas mamães. A liberdade delas, segundo Heidegger, estaria exatamente no sentido que elas dessem para a escolha tomada. Seria o porquê ela escolheu esse caminho e como ela viveu essa escolha. Nesse caso, cabe julgamento porque Isabella e Krone tinham intenções diferentes e isso muda tudo.

Reflexão sobre The Promised Neverland: A Escolha de Krone

Krone escolheu ser mamãe porque esse seria o mais alto posto que ela poderia ocupar na hierarquia que lhe era proposta. Ela era ambiciosa. Ela não se importava com a raça humana, ela se importava apenas consigo mesma. Ela estava disposta a fazer de tudo para permanecer viva e crescer de status dentro das possibilidades que ela tinha.

Nesse caso, vemos que o objetivo de Krone foi egoísta. Ela usou da sua liberdade para viver a vida mais superior que fosse possível. Sua sede de poder era tão grande que ela não aceitou esperar o tempo necessário para crescer na hierarquia interna das cuidadoras e começou a arquitetar um plano para derrubar Isabella (que era uma cuidadora de destaque).

Tentando achar um exemplo mais palpável, pensei na seguinte situação: temos um policial novato, com o ideal de justiça intacto. De repente, ele descobre que caiu em um batalhão corrupto, que lhe obriga a agir de forma errada e a aceitar parte do suborno arrecadado como forma de se comprometer. Se não aceitar, sabe que sua vida e a da sua família estão em risco. O que ele faz: aceita. Até aí, podemos desculpá-lo. Mas o que ele fará com o dinheiro? Se ele pegar esse dinheiro e der para a caridade ou usar para ajudar pessoas, ele estaria dando um destino nobre para ele. Agora, se ele falar “Não queria, mas já que fui obrigado a participar, então vou aproveitar!”, aí ele tomou uma decisão antiética.

Foi mais ou menos isso que ocorreu com a Krone. Ela decidiu usar a opção que ela tinha para superar sua posição atual e tentar se a melhor humana de todas. Não duvido que tenha passado pela cabeça dela a ideia de que ela seria tão boa que poderia sentar ao lado dos demais demônios como se fosse uma igual. 

Reflexão sobre The Promised Neverland: A Escolha de Isabella

Isabella tinha outros motivos para aceitar ser mamãe. Ela, enquanto só mais uma órfã, tinha uma admiração enorme pela sua mamãe. Além disso, ela fazia questão de ajudá-la, cuidando das crianças menores e assessorando a mamãe.

Quando ela descobre a verdade, seu mundo desaba. Ela pensa primeiramente em todos os seus irmãos que ficaram. Depois, ela tem o seguinte pensamento: eu recusando, vou morrer; e o serviço irá continuar, com outra pessoa sendo escolhida no meu lugar. Sendo assim, o melhor que posso fazer por essas crianças é aceitar ser mamãe e dar o máximo de amor e carinho que eu possa fornecer. Assim, mesmo elas tendo uma vida breve, será uma vida feliz.

Perceba a abnegação de Isabella. Ela não pensa nela, mas nas crianças. Você pode até julgá-la mal, mas eu não julgo. Ela não via outra escolha. Ela não tinha opções. Ela não pode ser culpada por não ver outras alternativas. Ao longo do anime, descobriremos que ela chegou a tentar sair do orfanato, mas não viu escapatória. Dentro do que ela podia fazer, ela buscou dar o seu melhor pelo bem das crianças.

Reflexão sobre The Promised Neverland: Conclusão

É muito fácil julgar os outros quando não é você que está passando pelo problema. Quantas vezes não zoamos aquelas pessoas que erram perguntas bobas em programas de pergunta e resposta? A questão é saber se estaríamos relaxados naquela mesma situação tal como estamos em casa julgando o erro bobo daquele desconhecido que lhe custou um dinheiro que ele nunca sonharia ganhar na vida. Da mesma forma, não podemos julgar as escolhas feitas por Krone e Isabella. Eu me atrevi a julgar as motivações das duas, mas até isso é um risco porque, como eu mesmo falei, não sei se tomaria a decisão “certa” se vivesse a vida que elas viveram.

Aprofundando o Assunto

Caso não tenha visto o anime ainda ou queira rever, ele está disponível na Netflix. Como a série é inspirada em um mangá, segue um link para comprar as edições no site da Amazon.

Caso queiram conhecer e ler mais sobre Martin Heidegger (que foi citado nesse artigo) e sua noção de liberdade, segue uma sugestão de lista de leitura que selecionei a partir das indicações do site Contra os Acadêmicos:

Heidegger: Um mestre da Alemanha entre o bem e o mal (Rüdiger Safranski)

Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger (Ernildo Stein)

Compreender Heidegger (Marco Antonio Casanova)

Heidegger (Benedito Nunes)

E aí? Quais são suas reflexões sobre esse anime? Deixa aí nos comentários! Gostou dessa reflexão? Compartilha! Quer sugerir outros animes para fazermos um artigo? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Referências

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2016.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.