Reflexão sobre Ruptura: Trabalho Alienado

Reflexão sobre Ruptura: Trabalho Alienado

Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre a série Ruptura. Nela, uma empresa utiliza um procedimento cirúrgico para separar as memórias dos seus empregados de tal forma que eles, ao entrarem no espaço de trabalho, esquecem tudo do lado de fora e vice-versa. Na reflexão, mostrarei como a série é uma crítica atualizada ao trabalho alienado denunciado já a muito tempo por Karl Marx. Não teremos spoilers da trama / mistério da série. Vamos lá!

Sobre Ruptura

Ruptura (Severance, no original) é uma série de suspense da Apple TV+ que estreou em 2022.

O enredo apresenta como personagem principal Mark Scout (Adam Scott). Ele trabalha nas Indústrias Lumon como refinador de macrodados.

Para assumir esse cargo, ele precisou fazer um procedimento cirúrgico chamado de “ruptura”. Basicamente, é um chip implantado na cabeça do paciente que consegue separar as memórias do emprego das memórias da vida pessoal.

Dessa forma, quando você entra no local de trabalho, você se torna uma outra pessoa, que só tem memórias dessa vida laboral. Quando sai do emprego, as memórias do trabalho somem e você volta a ter as memórias externas.

A persona do empregado é chamada de Interno. A persona do mundo exterior é chamada de Externo. O processo de ruptura é irreversível.

Essa “vida dupla” de Mark estava indo muito bem até acontecerem duas coisas ao mesmo tempo: para o seu interno, entrou uma nova funcionária no seu setor que não está aceitando bem essa nova vida; e para o seu externo, apareceu um homem dizendo que eles trabalhavam juntos nas Indústrias Lumon!

Reflexão sobre Ruptura: Considerações Iniciais

Trabalho x Emprego

Antes de começar a apresentar os conceitos de Marx, é importante fazer uma distinção conceitual entre Trabalho e Emprego:

Trabalho – Modificação consciente da natureza.

Emprego – Ocupação com propósito de ganhar seu sustento / renda.

Mesmo que no dia a dia, trabalho e emprego sejam sinônimos (talvez até no dicionário), filosoficamente pensando, são coisas distintas.

Existem diversos trabalhos os quais fazemos que não nos dão renda, como um trabalho artesanal por hobby ou um trabalho voluntário na igreja. Já todo o emprego é um tipo de trabalho.

Isso não tira a importância do emprego para a humanidade já que a grande maioria das pessoas passa boa parte da sua vida trabalhando nos seus empregos e se define socialmente pela profissão que exerce.

Empregos Antes e Hoje

Karl Marx foi um filósofo e sociólogo alemão do século XIX.

Muitas pessoas criticam Marx, dizendo que sua visão está ultrapassada já que as condições de trabalho melhoraram muito desde a época em que ele escreveu suas críticas ao capitalismo.

Também é de se destacar que a principal forma de emprego na época de Marx eram as indústrias, ou seja, fabricação de coisas. Hoje, a principal forma de emprego são as empresas de prestação de serviços.

O interessante da série é que ela apresentou um emprego na área de serviços que possui praticamente todas as características negativas que eram criticadas por Marx.

Mesmo as Indústrias Lumon sendo uma empresa fictícia e extravagante, ela possui elementos que estão presente em maior ou menor grau nas empresas cotidianas.

Com isso, fica posto que as críticas de Marx ao trabalho alienado ainda estão válidas e precisam ser expostas.

Trabalho como Diferencial do Ser Humano

Marx era avesso a dar definições ontológicas para o ser humano. Como um materialista, ele não gostava de definir algum atributo metafísico a todos os seres humanos que serviria para os classificar como um mesmo ente, tal como fizeram Platão, Aristóteles, Santo Agostinho (como alguns exemplos).

Porém, nos seus escritos, foi possível verificar que ele atribuiu uma característica material comum a todos os seres humanos. Essa característica era o trabalho.

Como dito anteriormente, trabalho, para Marx, seria a capacidade de modificação consciente da natureza. Dessa forma, todos os seres humanos trabalhavam porque eles idealizavam coisas em suas mentes e, depois, buscavam criá-las modificando a natureza.

Por exemplo, o ser humano não viveu somente em cavernas criadas naturalmente; ele foi capaz de criar moradias das mais diversas possíveis. Da mesma forma, o ser humano também não comia apenas alimentos ao natural; muitas vezes, ele os preparava, por exemplo, cozinhando-os.

A diferença, segundo Marx, dos seres humanos para os animais, é que estes, quando modificam a natureza, o fazem de forma instintiva (já estaria na sua carga genética fazer aquilo). Já os seres humanos observam a natureza, pensam aquilo que gostariam de fazer com ela e só depois a modificam para que ela se adeque ou se transforme naquilo que se queria.

Em outras palavras, o ser humano não se adequa a natureza, ele a subordina, modificando-a conforme sua vontade e necessidade.

Dessa forma, o ato de trabalhar é algo que diferencia o ser humano de todas as demais coisas existentes.

Reflexão sobre Ruptura: Trabalho como Exercício e Reconhecimento da Natureza Humana

Aqui começam as críticas da série aos empregos cotidianos e que podemos fazer comparativos com a teoria de Marx.

Para Marx, como o trabalho era o grande diferencial do ser humano para os demais seres, era exatamente no trabalho que o ser humano se humanizaria. Ou seja, ele se reconheceria como um ser humano através do trabalho que ele exerce.

Nas sociedades contemporâneas capitalistas, a maior parte do trabalho que exercemos é exatamente em nossos empregos. Logo, o lugar privilegiado que temos para nos humanizar, seguindo a lógica de Marx, é nos nossos empregos.

Dessa forma, quando a série propõe a existência da ruptura, em que alguém separa o seu eu empregado do seu eu não-empregado, basicamente o que está se propondo é a separação entre o eu trabalhador e o eu tempo liberado.

Porém, ao fazer a ruptura, ocorre a desumanização do ser humano segundo a lógica de Marx. O que estamos fazendo é tirar da nossa vida exatamente aquilo que nos faz nos identificarmos como seres humanos. Logo, a vida perderia sentido.

Não saber o que você faz no emprego, não saber o valor do que você produz no seu emprego, não saber as consequências do seu emprego basicamente significa dizer que você não sabe porque está vivo. É levar uma vida sem propósito.

A série, inclusive, nos mostra alguns exemplos de pessoas que veem a importância do seu trabalho, daquilo que estão fazendo e tomam seu trabalho como propósitos de vida (mesmo que, algumas vezes, de modo exagerado). No caso, cito aqui tanto o personagem Ricken Hale (Michael Chernus) – o cunhado de Mark – que escreve livros de autoajuda para ajudar as pessoas a serem felizes, quanto Harmony Cobel (Patricia Arquette) – a chefe de Mark – que devota sua vida à empresa acreditando que ela está transformando o mundo em um lugar melhor.

Reflexão sobre Ruptura: Os Vários Tipos de Alienação no Trabalho

Alienação significa estar alheio ou distante de algo, é um estranhamento entre você e outra coisa.

O trabalho alienado ocorre quando você não se identifica com o trabalho o qual você desempenha. Quando não se vê o propósito existencial em dedicar horas da sua vida a uma tarefa. Quando se sente que está desperdiçando suas forças com algo que não lhe traz satisfação.

A alienação mais grave e profunda ocorre exatamente quando você se desumaniza no seu emprego. Quando você não se sente como alguém que está conscientemente desempenhando uma função importante, mas é apenas mais um qualquer em uma grande máquina corporativa. Em outras palavras, você se torna uma máquina ou uma peça de engrenagem.

Só que essa alienação começa de forma sutil e vai piorando, chegando ao ponto que nada mais faz sentido.

Na série, vemos vários exemplos dessa alienação.

O primeiro é exatamente o emprego de Mark. Os funcionários só sabem que estão refinando dados. Mas o que isso significa? Esses dados chegam de forma criptografada e o refinamento é feito através de uma sensação estranha. Ou seja, eles não sabem o que fazem! Por mais que a empresa diga que o trabalho deles é vital, eles não fazem ideia do que estão fazendo nem no que estão ajudando.

Isso também ocorre quando se tenta entender o que são as Indústrias Lumon ou qual é sua atividade. A princípio, parece ser algo relacionado à indústria farmacêutica, mas não está claro.

A coisa fica ainda mais louca quando os funcionários do setor de refinamento conhecem outros setores porque, em um primeiro momento, eles não conversam entre si. Ou seja, não parecem que todos estão trabalhando juntos para um mesmo propósito.

Ainda pensando nos outros setores que aparecem da empresa, o fato dos funcionários desses setores mal se conhecerem e ser evitado grandes contatos entre eles também é uma forma de alienação. Ao não se “importar” com seus colegas trabalhadores de outras áreas, você se isola e perde seu sentimento de pertencimento de classe. Essa é uma alienação que as empresas tentam sempre impor porque temem a união dos seus funcionários porque juntos eles conseguem criar “problemas” para a empresa. Separados, são mais facilmente controlados.

Outro exemplo é o funcionário Irving (John Turturro), cujo seu interno adotou a política da empresa de uma forma tão extrema que beirava a uma experiência religiosa. Essa seria uma alienação de valores porque você abandona tudo aquilo que aprendeu como certo e errado na vida e começa a viver as noções de certo e errado dados pela empresa de forma inquestionável.

O funcionário Dylan (Zach Cherry) também é um exemplo de alienação ao “se vender” pelas premiações e recompensas esdrúxulas que recebe pelo seu trabalhado, vendo na conquista delas o seu propósito existencial.

Reflexão sobre Ruptura: Nem Tudo é Emprego

Como tido anteriormente, trabalho vai muito além de emprego. Por isso, não cabia no título desse tópico a famosa frase “nem tudo é trabalho”. Dessa forma, eu a adaptei para o nosso contexto e evidencio algo também evidenciado pela série: “nem tudo é emprego”.

A personagem Helly (Britt Lower) veio como alguém de fora desse universo e que não aceita a configuração dele. Ela critica ferozmente a decisão de sua externa de tê-la criado e a “aprisionado” nesse ambiente que é 24h o seu emprego!

Outra crítica da série se dá através do livro escrito pelo cunhado do Mark, que apresenta várias frases de efeito que levam os internos a refletirem sobre o absurdo que é viver para trabalhar em empregos.

Em outras palavras, a série também nos mostra que uma vida dedicada ao emprego não é saudável. O emprego é apenas uma parte de nossas vidas e não toda ela. Temos muito mais a contribuir socialmente fora dos nossos empregos e devemos fazer isso.

Da mesma forma, quando o emprego não está contribuindo com nossas vidas, ele também não é mais saudável e deve ser repensado. Inclusive, isso tem reflexo na sociedade americana pós-pandêmica, que está exigindo melhores condições nos seus empregos e até trocando ou abrindo mão de suas vagas para terem uma qualidade de vida melhor.

Reflexão sobre Ruptura: Conclusão

Podemos concluir que o emprego é uma parte fundamental da nossa humanidade, porém não é a única. Dessa forma, precisamos sim valorizar aquilo que fazemos em nossos empregos, mas não podemos dedicar toda a nossa vida a ele. Além disso, nosso trabalho precisa fazer parte de quem nós somos, precisamos nos reconhecer aquilo que fazemos. Sem isso, nos diminuiremos como seres humanos.

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Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.