Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre o filme Free Guy. Nesse filme, somos apresentados ao personagem Guy, que está em busca do seu amor verdadeiro e não sabe que é um NPC de um jogo online. Quando ele descobre, precisa enfrentar a verdade e ajudar uma jogadora a salvar Free City, o seu mundo. Nessa reflexão, falarei do problema da naturalização da violência, em que nos acostumamos a conviver com a violência diariamente e também a agir com violência para resolver nossos problemas. Teremos grandes spoilers do filme, então fiquem avisados. Vamos lá!
Sobre Free Guy (COM Spoilers)
Free Guy é um filme estadunidense de comédia que estreou em 2021. Como o filme pertence a Disney, provavelmente estará na Disney+ ou no Star+.
Guy (Ryan Reynolds) é um típico cara branco de meia idade americano. Ele tem uma rotina diária muito bem definida, desde a sua roupa até seu tipo de café, passando pela sua forma padronizada de falar com as pessoas. Ele trabalha como gerente de banco e está acostumado a ser assaltado VÁRIAS vezes ao dia. Ele também não estranha o fato de existirem diversas explosões, tiroteios, tanques e helicópteros passando pela sua cidade. Guy só deseja uma coisa: achar a mulher de seus sonhos. E isso ocorre inesperadamente!
Guy conheceu a personagem Molotov Girl (Jodie Comer) e sabia que ela era a mulher que ele tanto buscava, se apaixonando imediatamente. Mas tinha um problema: ela era uma heroína. Heróis, naquela cidade, são pessoas que usam óculos de sol e podem fazer o que quiserem, ignorando todas as regras que as demais pessoas da cidade fazem. Por isso, Guy decide pegar os óculos de sol de um dos assaltantes do seu banco e tudo muda!
Guy agora enxerga várias coisas que seus olhos normais não podiam ver. Um novo mundo se abre para ele. Portando os óculos, Guy vai atrás da Garota Molotov e tenta ajudá-la a roubar uns itens de uma fortaleza. Só que eles fracassam. Molotov explica que Guy está no nível 1 e precisa subir até o nível 100 para conseguir de fato ajudá-la. Guy, então, pergunta como subir de nível e lhe é dito que ele precisa matar, roubar, destruir… ao dizer que não queria fazer essas coisas ruins, descobre que pode subir de nível desarmando os “caras maus”. E, assim, ele inicia sua jornada para subir de nível fazendo o bem.
Até aqui, já sabemos que Guy é um NPC (Personagem Não-Jogável, em inglês) de um jogo chamado Free City. Sabemos também que ele está agindo muito fora da sua programação, tão diferente que as pessoas do mundo real acham que Guy é um jogador humano muito habilidoso que conseguiu hackear a skin (a aparência) do NPC e não o próprio NPC agindo por conta própria. Porém, o que leva a população mundial de jogadores à loucura é a atitude de Guy em fazer o bem dentro de Free City. Enquanto todas as pessoas até então cometiam crimes e atrocidades para subir de nível, Guy subia de nível fazendo bem, ajudando e salvando pessoas, combatendo o crime. Ele se tornou a sensação da Internet.
Voltando para dentro de Free City, Guy supera o nível 100 e vai ajudar Molotov Girl. Dessa vez eles quase tem sucesso na missão e a garota começa a se interessar por aquele “jogador” que tem vários gostos e ideias em comum com ela. Mas as coisas não estavam tão boas assim no mundo real…
Novamente, até aqui, sabemos que Molotov Girl é o avatar da programadora Millie Rusk. Ela, junto com seu amigo Keys (Joe Keery), tinham feito um jogo de realidade virtual pacífico, com uma IA (Inteligência Artificial) super avançada. Só que esse jogo foi comprado por Antwan (Taika Waititi) e usado como base para o jogo Free City, mas sem os devidos créditos e pagamentos de royalties. A missão de Millie era encontrar provas de existência do código original do jogo para comprovar o uso indevido. Mas, agora, ela também quer revela ao mundo que seu código permitia que os personagens criados pela sua IA poderiam ganhar autoconsciência com o desenrolar do seu desenvolvimento interno.
Porém, existe um problema: o jogo Free City 2 será lançado em 48 horas e não será retrocompatível com Free City 1. Ou seja, ao lançarem o jogo novo, o antigo será desativado e tudo se perderá (tanto a prova do roubo quanto as “vidas” dos personagens NPCs). Millie, então, decide contar toda a verdade para Guy. Em um primeiro momento, Guy se desespera e desilude com sua vida; mas, depois, resolve ajudar Millie e convoca a ajuda dos outros NPCs.
Uma corrida contra o tempo começa tanto dentro quanto fora do jogo. No final, Guy consegue revelar ao mundo a existência do jogo original de Millie e Keys dentro de Free City. Com isso, ambos recuperam os direitos sobre seu programa e lançam um jogo novo, onde os NPCs possuem autonomia e autoconsciência de suas ações, vivendo de fato livres. Curiosamente (e felizmente), as pessoas do mundo real gostaram da ideia de entrarem no jogo para interagirem de forma harmônica com os NPCs, e não os maltratar como costumavam fazer em Free City.
Reflexão sobre Free Guy: O Mundo Precisa ser Violento?
Os primeiros minutos do filme podem ser chocantes para quem não sabe do que se trata Free Guy. Isso ocorre porque Guy age naturalmente, seguindo sua rotina diária de acordar, tomar café e trabalhar enquanto a cidade toda está um caos. Tem helicóptero voando e tanque andando pela cidade, ambos atirando e destruindo tudo o que conseguem. Tem pessoas roubando carros, lojas e bancos. Tem pessoas matando outras pessoas. E toda essa violência é normal para Guy e todos os demais. Eles se acostumaram com isso.
Em certo momento do filme, Guy tenta “acordar” os outros NPCs, dizendo que eles podem viver em um mundo pacífico e eles se surpreendem que tal mundo existe. Como eles passaram a vida toda rodeados pela violência, não conseguiam vislumbrar a possibilidade de viver uma vida de paz, sem que estivessem sendo roubados, agredidos ou mortos!
Porém, o maior humor negro dessa fala de Guy é que ele, inocentemente, acha que o nosso mundo real que é esse mundo pacífico e começa um discurso do tipo “Millie, diga para eles quantos bancos são assaltados por hora, quantas mortes ocorrem diariamente, quantos tiroteios são registrados…” e a Millie acaba dizendo que muitos e que isso é um problema. Ou seja, o nosso mundo real é tão violento quanto o mundo de Free City; acabamos espelhando toda a violência real, que está dispersada pelo globo terrestre, em um ambiente virtual pequeno. Se contarmos quantos crimes são cometidos por dia globalmente, veremos que a estatística é tão ruim ou até pior que a vivenciada em Free City.
Curiosamente, acaba que os personagens alcançam sim o mundo pacífico que eles queriam. Mas não é no mundo real, é em outro mundo virtual. Porém, isso não deixa de nos dar esperanças que, se somos capazes de criar um mundo virtual pacífico, também somos capazes de criar um mundo real pacífico. Basta vontade.
Reflexão sobre Free Guy: Por que Resolver Tudo na Violência?
Outro ponto interessante sobre violência do filme é o meio para se subir de nível no jogo. Quando Guy pergunta sobre isso, Molotov Girl diz que é matando, roubando e cometendo vários tipos de crime. Nisso Guy questiona “por que tem que ser dessa forma? Não existiria uma forma pacífica de se ganhar experiência”?
Na hora, a única ação menos violenta possível no jogo era desarmar os demais jogadores, evitando que eles cometessem os crimes. Com isso em mente, Guy parte para sua missão de subir de nível fazendo o bem, salvando os NPCs das constantes agressões que eles sofriam dos demais jogadores.
O mais legal foi que a atitude de Guy abalou todo o mundo real. Achando que Guy era um jogador, as pessoas se surpreenderam pela possibilidade de subir de nível no jogo fazendo o bem. Guy se tornou a sensação sendo pacifista. A atitude de Guy fez com que as pessoas parassem para pensar que é possível crescer na vida fazendo o bem.
No Brasil, se naturalizou o famoso “jeitinho”, em que sempre damos um jeito de resolver nossos problemas, mesmo que burlando a lei. Pior do que burlar a lei, é o fato de muitos terem orgulho disso. É quase uma sensação de vitória conseguir resolver seu problema de um jeito mais simples porque a pessoa não seguiu a regra em questão, dando um “jeitinho”.
Também existe no Brasil a cultura de pensar “regras foram feitas para serem quebradas”, quase que incitando todos a procurarem as brechas de lei. E o pior disso tudo é o fato desse evento ocorrer desde uma relação pai e filho ao estilo “você não disse especificamente isso” até grandes sentenças jurídicas que são dadas baseando-se em interpretações forçadas de uma lei que foi feita demasiadamente genérica.
Lembro de um “causo” de grupo de WhatsApp: a minha colega manda a imagem do sobrinho mexendo no celular com o pé e explica que a criança foi proibida de mexer no celular como castigo; porém, a avó falou “você não vai mais botar a mão nesse telefone hoje!” e ele interpretou literalmente a frase, entendendo que com o pé não teria problema… Sabe qual foi o primeiro comentário? Esse vai ser advogado! Ou seja, já naturalizamos que o papel do advogado é encontrar as brechas na lei que ajudem seu cliente. O advogado não é mais a pessoa que auxilia o cliente para que a lei seja cumprida, é aquele que auxilia o cliente a burlar a lei… como queremos um país justo quando os profissionais formados para garantir a lei são exatamente aqueles que se especializam em burlar a lei?
Voltando ao filme, Guy estava fazendo bastante sucesso e, com isso, os jogadores foram diminuindo seus atos de violência dentro do jogo e questionando como eles poderiam crescer virtualmente sem fazer maldades. Isso criou um problema enorme para Antwan (o dono do jogo), porque toda a estrutura do seu negócio dependia da violência. Solução: eliminar Guy para que seu bom exemplo pare de atrapalhar os negócios! Essa é uma triste realidade de pessoas que são caladas (literal e não literalmente) por grandes corporações e governos, quando seus atos começam a incomodar o sistema. Você pode ir contra o sistema enquanto sua atitude ainda pode ser controlada pelo sistema, mas basta crescer sua influência para sua voz ser cortada.
Conclusão
Com isso, concluímos a primeira parte dessa reflexão sobre Free Guy, onde mostramos que o filme escancara um grande problema da nossa atualidade: a naturalização da violência em nossas vidas, que se reflete não só na violência em si, mas também no descumprimento de leis. Que possamos repensar nossas atitudes e vislumbrar se realmente não podemos usar toda a nossa capacidade criativa para o bem, para criar e fazer o bem.
Se você gostou até aqui, você pode continuar com a gente na segunda parte dessa reflexão sobre Free Guy, em que trabalharei a questão da noção de realidade e de protagonismo em nossas vidas.
E aí? Gostou dessa reflexão sobre Free Guy? Compartilha! Quer uma reflexão sobre outros filmes? Entra em contato comigo dizendo qual gostaria de ver aqui! Tem outro tema de Free Guy que lhe chamou atenção ou algo a acrescentar a essa reflexão? Comenta!
Até a próxima e tenham uma boa viagem!