Uma Reflexão sobre 1984: Um Duplipensamento sobre Rebeldia
Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o livro 1984 de George Orwell. Vamos contar a sua história resumidamente e fazer uma reflexão sobre as atitudes dos personagens principais no que se refere à rebeldia, destacando como cada um se apropriou desse termo. O artigo terá spoilers do livro, mas ainda assim recomendo ler o artigo porque vai inspirá-los a ler o livro, que não perde sua beleza por já se saber o fim. Vamos lá!
Sobre 1984
1984 (Mil Novecentos e Oitenta e Quatro) é um romance de George Orwell. Podemos considerá-lo uma distopia, ou seja, uma proposta de futuro pior que o presente (seria o oposto à utopia). Apesar de o ano de 1984 ser para nós um passado, o texto foi publicado pela primeira vez em 1949. Apesar da sua “previsão” não ter se cumprido, muita coisa falada naquela época pode ser identificada hoje em dia…
O personagem principal da história é Winston Smith. Ele é um funcionário do Partido Externo (para nós, seria um funcionário público). Ele trabalha no Ministério da Verdade, o órgão responsável por manipular a verdade, corrigindo textos e publicações, destruindo e confiscando documentos antigos, tudo o que fosse necessário para garantir que tudo o que o Partido dissesse fosse aceito como uma verdade inquestionável. Em dado momento, Winston começa a questionar o seu trabalho e a proposta política do partido.
O Partido Interno, representado pelo Grande Irmão, busca o poder pelo poder e é extremamento controlador e manipulador, inclusive com relação a relacionamentos amorosos. Apesar disso tudo, Winston consegue iniciar um caso amoroso com Júlia. Júlia aparenta ser uma garota devota ao partido, mas na verdade é rebelde. Juntos, eles começam a viver uma aventura amorosa. Tudo ia bem até eles resolverem confiar em O’Brien.
O’Brien é do Partido Interno, um membro da alta classe. Conduto, ele dá indícios de que é um rebelde e convence Winston a se juntar a ele. Winston confia e cai em uma armadilha junto com Júlia, sendo ambos presos e torturados.
Uma Reflexão sobre 1984: O que é Duplipensamento
Antes de explorar as rebeldias dos personagens, cabe explicar porque usei no título a palavra duplipensamento. Esse termo é uma criação de George Orwell para o livro. Duplipensar representa uma forma de manipulação em que você acredita em duas coisas contraditórias ao mesmo tempo. Dessa forma, durante o artigo, vamos mostrar formas contraditórias de se pensar o conceito de rebeldia, através das atitudes e experiências de alguns personagens do romance.
Uma Reflexão sobre 1984: Winston e a Rebeldia como Externalização
Winston, em dado momento da sua vida, resolve questionar o Partido. Ele começa a ficar desconfortável com a vida que leva, em especial, com sua função. Sendo um homem mais velho, ele ainda guarda vagas lembranças de como era a vida antes do Partido assumir o controle. Ele sabe que a vida que leva é uma mentira fabricada. Se por uma época isso não lhe incomodava, agora estava incomodando.
No início do livro, ele decide se arriscar registrando seu pensamento em uma espécie de diário. Isso era proibido pelo Partido, as pessoas não tinham fácil acesso à lápis e folhas, tudo para controlar a livre expressão do pensamento. É muito interessante seu próprio questionamento sobre o que ele está fazendo: se alguém pegar esse diário durante a existência do Partido, é muito provável que o destruam, perdendo o seu sentido. Por outro lado, se o encontrarem após a existência do Partido, a sua existência seria apenas histórica, já que não serviria mais como fonte de motivação à mudança.
Tendo isso em mente, Winston percebeu que somente escrever suas ideias não serviria de muita coisa. A partir desse momento, ele começa a pensar sobre formas de derrubar o partido. Sua primeira ideia é colocar essa missão nas mãos dos proletas, os trabalhadores. Os proletas não tinham nenhum envolvimento com o Partido e não sabiam que estavam sendo manipulados. Entretanto, por representar a maioria, se fossem esclarecidos, conseguiriam uma revolução. Essa era uma das apostas de Winston, mesmo que levasse tempo, ele acreditava que aconteceria um dia.
Mas tudo muda quando ele começa a se relacionar com Júlia. Seu caso de amor faz com que as coisas se tornem urgentes. Ele quer viver de forma livre esse romance e não pode mais esperar que os proletas se deem conta das mentiras do governo. Dessa forma, ele decide agir. Ele decide se rebelar. Se antes era apenas uma ideia, expressa no seu diário, ele percebe que precisava agir. Para isso, ele busca se filiar ao grupo de rebeldes que seguem um líder chamado Emmanuel Goldstein.
Ninguém sabe onde está Goldstein, sendo apenas possível acessar membros da oposição. Winston acha que O’Brien, um de seus superiores, é um desses membros rebeldes e lhe confessa suas intenções. O’Brien, em um primeiro momento, assume ser da força rebelde e lhe aceita no grupo, mas antes que Winston tenha chance de fazer qualquer ação contra o Partido, ele é capturado. No momento que sua rebeldia saiu do papel para ir para a ação, ele foi neutralizado.
Uma Reflexão sobre 1984: Júlia e a Rebeldia como Internalização
Júlia era mais nova que Winston e um membro ativo do Partido, líder de um grupo que defendia a castidade. No começo do livro, vemos Winston criticando-a devido a sua devoção ao Partido e sua extrema determinação em defender aqueles ideais corrompidos.
Entretanto, tudo muda de figura quando Júlia flerta com Winston e se mostra uma rebelde. Ela confessa a Winston que apenas finge ser defensora do partido, porque isso ajuda a tirarem o foco dela. Fingindo ser uma pessoa engajada na defesa dos valores propostos pelo partido, ela consegue viver uma vida pessoal totalmente contra aquilo que ela prega. Ela defende a ideia de que o importante é ter o espírito livre, mesmo que o corpo esteja preso.
Ela escolheu seguir as normas de forma exteriorizada, porque isso lhe garantia uma liberdade em burlar as normas que lhe incomodava. Basicamente, o que ela faz é seguir o padrão na maior parte do tempo, aparentando ser uma coisa. Ao transparecer que é adepta de tudo o que pregam, ninguém percebe suas “escapulidas”.
Para ela, a rebeldia exterior é infrutífera. É um risco desnecessário. Ela não acredita na possibilidade de mudança real, então prefere “seguir” o padrão da sociedade em tudo o que não lhe incomoda. Quando questionada por Winston se ela não se incomodava em ver as outras pessoas sendo manipuladas, ela responde que não, que sua preocupação é apenas consigo mesma.
Júlia é uma rebelde individualista. Ela não se preocupa com as demais pessoas. Ela está satisfeita se ela consegue viver livre, não se preocupando com o fato das demais pessoas estarem presas na ideologia do partido. Para ela, ser livre não pressupõe a liberdade política e social de uma população, mas apenas seu poder individual de fazer o que bem entende.
Pelas normas do partido, Winston e Júlia nunca poderia se assumir. Ele vê um problema, ela não. Winston queria se juntar aos rebeldes para derrubar o poder do Grande Irmão (a figura que representa o Partido), ela não. Contudo, ela acaba cedendo à insistência de Winston e isso a leva para a armadilha. Será que ela estava certa? Será que o melhor é lutarmos apenas por nós mesmos, que querer ajudar os outros é correr um risco desnecessário?
Uma Reflexão sobre 1984: O’Brien e a Rebeldia Não-Rebelde
O’Brien é o personagem mais instigante do livro. Ele só ganha destaque no final, mas consegue nos levar para um outro nível de reflexão.
Durante o livro, Winston tem certeza que O’Brien é um membro rebelde infiltrado do Partido Interno. Ele percebe indícios na fala e nos olhares de O’Brien. Quando Winston resolve se juntar aos rebeldes, ele marca uma reunião com O’Brien.
O’Brien recebe Winston e Júlia muito bem, explica-os como funciona o trabalho dos rebeldes, como eles agem para tentar minar as forças do Grande Irmão e conseguir derrubar sua tirania. Durante sua explicação do grande plano, ele deixa claro que na prática é cada um por si, que as ações são passadas através de contatos e que se alguém for descoberto, ele é abandonado.
Dias depois dessa reunião, Winston e Júlia são capturados pela polícia do pensamento, o braço do partido que caça quem começa a ter livre pensamento. Preso, Winston é torturado por O’Brien.
O’Brien se revela um defensor dos ideias do partido, traidor da causa rebelde. Supostamente, ele enganou Winston e Júlia, se passando por rebelde apenas para ter provas concretas e poder capturá-los. Contudo, minha leitura do romance não deixa as coisas assim tão simples.
A todo o momento O’Brien deixou claro que em caso de captura, seria cada um por si. Pensando dessa forma, podemos questionar se ele não estava fingindo para o partido. Para se manter na sua posição e não ser capturado, ele se passa como um fiel partidário que engana possíveis rebeldes, se passando por um; mas na verdade ele é um rebelde que consegue agir pelas costas do partido. Ao mesmo tempo em que ele pune e captura rebeldes, ele está ajudando os rebeldes. Na prática, ele conseguiria viver ao mesmo tempo as duas proposta de rebeldia: Interior e Exterior.
Além disso, a fala de O’Brien é tão cativante, tanto quando ele defende os rebeldes quanto quando ele defende o partido, que faz parecer que ele é a encarnação do duplipensamento. Ou seja, ele acredita e não acredita ao mesmo tempo no partido e nos seus ideais; ou também podemos dizer que ele acredita em ambas as propostas e as vive simultaneamente. Quando ele está na posição de alto membro do partido, ele encarna o defensor dos ideias do Socing (nome do partido); e quando está na posição de rebelde, ele encarna os ideias libertários de Emmanuel Goldstein.
Parece impensável, mas tem muitas pessoas que são capazes de viver esse tipo de realidade, acreditando em duas coisas opostas ao mesmo tempo. São pessoas difíceis de se tratar porque não sabemos exatamente com o que estamos lidando. É possível, inclusive, dizer que O’Brien é a pessoa mais feliz do livro porque qualquer cenário lhe satisfaz. Ele é um rebelde que gosta de ser rebelde ao mesmo tempo que não se incomoda se as coisa continuarem a serem como são.
Conclusão
No fim dessa reflexão sobre 1984, podemos dizer que esse é um livro o qual mexe com os seus conceitos de certo e errado, verdade e mentira, submissão e rebeldia, paz e guerra, fartura e penúria, amor e sofrimento. Ao mesmo tempo em que sabemos que não estamos nessa realidade proposta, sabemos que muitos dos temas debatidos são muito atuais e aparecem de um forma mais tênue ou mais escrachada em nossa sociedade global. Eu abordei apenas uma parte desse livro, mas ainda tem muito o que se debater dele. Como indicação, eu sugiro um episódio do Nerdcast dedicado a esse livro, que além do excelente debate também traz trechos dublados pelo excepcional Guilherme Briggs.
E aí? Já conhecia o livro ou o filme? Que outra discussões podemos fazer sobre ele? Deixa aí nos comentários! Gostou dessa reflexão? Acha que ela engrandeceu seu conhecimento? Compartilha para que outras pessoas também possam descobrir esse texto. Quer sugerir outros livros para reflexão? Entra em contato comigo!