Reflexão sobre No Ritmo do Coração: Inclusão e Exclusão

Reflexão sobre No Ritmo do Coração: Inclusão e Exclusão

Olá, marujos! Hoje, faremos uma reflexão sobre o filme No Ritmo do Coração, ganhador do Oscar 2022. O filme conta a história de uma adolescente ouvinte, filha de pais surdos, a qual descobre uma vocação ao canto e terá que enfrentar barreiras dentro e fora da sua família. Na reflexão, falarei da comunidade surda e abordarei o tema da inclusão e da exclusão utilizando cenas e momentos do filme. Teremos spoilers! Vamos lá!

Sobre No Ritmo do Coração (COM Spoilers)

O filme No Ritmo do Coração foi lançado em 2021. Ele é uma versão americana do filme francês A Família Bélier. O filme está disponível na Amazon Prime Video.

Como curiosidades sobre esse filme temos:

1. O título original é CODA, que é uma sigla em inglês para “crianças de pais surdos”, usada para indicar filhos ouvintes de pais surdos;

2. Os três atores coadjuvantes do filme que compõe a família surda são de fato surdos;

3. Além do Oscar de melhor filme, No Ritmo do Coração também rendeu o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante para Troy Kotsur (que interpretou Frank Rossi – o pai surdo).

A história começa com mais um dia normal na vida da adolescente Ruby Rossi (Emilia Jones). Ela ajuda seu pai e irmão na pesca e venda dos peixes logo de manhã cedo e, depois, corre para a escola. Lá, ela sofre bullying por ter pais surdos e porque, quando criança, falava “estranho” (já que sua dicção não foi estimulada por seus pais não utilizarem a língua oral).

As coisas começam a mudar quando ela se matricula no coral da escola só para passar mais tempo com o seu “crush” Miles (Ferdia Walsh-Peelo). Na primeira aula, ela trava pela vergonha de cantar na frente de alunos que caçoavam dela e foge. Porém, depois, ela volta e se apresenta, demonstrando uma grande aptidão ao canto.

O professor Sr. V (Eugenio Derbez) ficou encantado com a voz de Ruby e resolve escalá-la para o recital da escola e, posteriormente, indicou-a para uma vaga no Colégio de Música de Berklee. Ela adora tudo isso porque gosta de cantar e se vê seguindo esse caminho. Mas surgem alguns problemas…

Primeiro, sua família não consegue entender a paixão dela pela música e tem dificuldade de entender seu potencial. Segundo, a família ficou dependente dela para resolver todos os seus problemas de comunicação com a sociedade ouvinte e tem medo de como seria a vida deles sem alguém intermediando as comunicações.

A coisa ainda piora muito porque seu pai e irmão resolveram fundar a própria cooperativa de peixes, para lucrarem mais com suas vendas. O problema estava exatamente na comunicação com as demais pessoas já que eles tinham dificuldade de organizar tudo por não conseguirem se comunicar. Dessa forma, sem Ruby, as coisas dariam errado e o sustento da família ficaria ameaçado.

No final, os Rossi percebem que todos adoram ouvir Ruby cantando e entendem que precisam deixar ela seguir a vida dela, buscando outras formas de se fazerem entender em sua sociedade. Paralelamente, os ouvintes da sua cidade também começaram a entender que precisam querer cooperar para incluir os Rossi em sua comunidade.

Reflexão sobre No Ritmo do Coração: A Comunidade Surda e a Filosofia da Linguagem

Diferentemente de outras deficiências, os surdos acabaram desenvolvendo uma comunidade própria dentro das sociedades em que vivem (feita, majoritariamente, de ouvintes).

Provavelmente, o grande motivador dessa situação é a existência de uma língua de sinais utilizada pela comunidade surda, que se torna seu idioma principal.

É importante destacar que a língua de sinais de um país não é simplesmente uma transcrição em gestos da língua oficial do país. Por exemplo, a LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) não é o Português Brasileiro em sinais. A LIBRAS tem toda uma estrutura linguística própria, tais como gramática, sintaxe, morfologia, fonologia etc. Como curiosidade, existem gírias e regionalismos na LIBRAS que não possuem uma correspondência direta com palavras do português!

A língua é a forma simbólica que uma sociedade desenvolve para manifestar suas ideias, opiniões e sentimentos, além de fazer relações com o mundo concreto. A língua, sendo um símbolo, é abstrata, criada por convenção social, que vai sendo transmitida para os novos membros daquela sociedade e vai guiando suas visões de mundo. Por exemplo, os esquimós possuem nomes próprios para vários tons de branco e os índios brasileiros possuem vários nomes para vários tons de verde porque suas realidades exigem essas distinções, sendo que nós chamaríamos tudo de branco e verde.

Como os surdos não conseguiram se comunicar com os ouvintes porque aqueles não ouvem os sons, acabaram desenvolvendo sua própria língua, através de sinais, gestos e expressões faciais. Como os ouvintes não fizeram questão de aprender essa nova forma de se comunicar, os grupos acabaram se separando socialmente. Dessa forma, os ouvintes preferiram conviver com ouvintes e os surdos com surdos. Dessas comunidades, surgem pequenas diferenciações que só fazem sentido dentro do contexto de sua comunidade. Por exemplo, aquele assovio de “fiu-fiu” que um homem faz para uma mulher bonita não diz nada para uma mulher surda, enquanto que “mexer a língua rapidamente no canto da boca” para indicar um ladrão não diz nada a um ouvinte.

Óbvio que os surdos precisaram se obrigar a buscar contato com os ouvintes porque a maioria dos estabelecimentos comerciais, culturais e órgãos públicos são dominados por ouvintes. É quase uma questão de sobrevivência. Mas eles fazem isso por necessidade e não porque se sentem confortáveis. É análogo (guardando as devidas proporções) ao caso de filhos de imigrantes latinos que preferem conviver com os seus iguais, nos seus bairros latinos, falando sua língua materna, a “se misturarem” com os americanos.

Surge dessa mútua exclusão o problema da convivência harmônica entre essas duas comunidades, a de ouvintes e a de surdos, que em última instância possuem a mesma nacionalidade, possuem muitas coisas em comum, mas não conseguem compartilhar isso entre si porque não conseguem se entender.

Hoje, já identificamos que o movimento de mudança deve vir do ouvinte. O ouvinte possui os meios para se expressar na língua de sinais, mas os surdos não possuem os meios para se expressar na língua oral! Precisamos, agora, acabar com o preconceito.

Temos o preconceito do ouvinte, que precisa aceitar sua obrigação de entender o outro dentro da realidade do outro, usando dos meios que possui para acolher e compartilhar, e não excluir. Mas também o preconceito do surdo, que acabou se fechando “no seu mundinho” e agora precisa dar uma chance para aqueles que começaram a despertar para a inclusão poderem penetrar nessa bolha e poderem criar laços.

Como quase tudo na vida, esse processo passa pela educação, tanto a informal (na família) quanto a formal (na escola). É por isso que defendo o ensino obrigatório de LIBRAS nas escolas desde a alfabetização. Tem tanta coisa inútil que aprendemos na escola (que só fazem sentido se formos buscar uma profissão muito específica) e algo tão importante quanto aprender a principal língua usada por 2 milhões de brasileiros e dar a chance dos 10 milhões de surdos brasileiros (que correspondem a 5% da população nacional) poderem se comunicar normalmente entre si e com as demais pessoas não é priorizado.

Reflexão sobre No Ritmo do Coração: Analisando Cenas

Casos de Exclusão

No filme, somos apresentados a vários casos de exclusão da comunidade surda (sofridos ou praticados):

1. O bullying sofrido pela protagonista, que é alguém inserido na comunidade surda por ser filha de surdos e, por muito tempo, ter falado “estranho” por causa da dicção mau trabalhada na infância por falta de exemplos de fala;

2. A vergonha pela qual passa pai e mãe ao terem que expor suas intimidades para a filha que estava interpretando para os pais em uma consulta médica;

3. A equipe de reportagem que não dava atenção para o pai e filho, que eram os líderes da cooperativa, e só se dirigia à filha ouvinte;

4. Os pais da Ruby, que em um primeiro momento não viam sentido na filha querer cantar;

5. Jackie Rossi (Marlee Matlin) – a mãe da Ruby – ao não querer conviver com as esposas dos outros pescadores;

6. A briga no bar envolvendo Leo Rossi (Daniel Durant) – o irmão da Ruby – devido a problemas de comunicação;

7. O desconforto da família Rossi ao estarem no recital da filha e não entenderem nada do que estava acontecendo;

8. Os pais da Ruby ao não tentarem controlar os sons que emitiam durante o sexo para não constrangerem a filha;

9. O amigo do Miles e o resto da escola que ficou fazendo piada do “sexo barulhento” dos pais da Ruby.

Como podem ver, a maioria dos exemplos de exclusão parte dos ouvintes, que gostam de “zoar” a deficiência da família Rossi ou não aceitam suas peculiaridades. Mas também vemos casos de exclusão dos surdos, que não querem perceber as peculiaridades dos ouvintes.

O destaque, para mim, está na cena do atendimento médico, mostrando como o acesso aos serviços essenciais são problemáticos para os surdos e os agentes nem tem culpa por não terem sido preparados para isso.

É interessante pensar que cada vez mais vemos pessoas com deficiência “surgindo” na sociedade não porque estão tendo mais casos que antes, mas porque, aos poucos, essas pessoas estão deixando se serem escondidas ou se esconderem. Precisamos, agora, aprender a nos relacionar com elas.

Casos de Inclusão

Felizmente, o filme passa uma mensagem positiva e apresenta possibilidades para a inclusão no seu final:

1. As pessoas da cooperativa estavam aprendendo a língua de sinais para se comunicar com os Rossi;

2. Ruby canta ao mesmo tempo que sinaliza a canção durante sua audição, permitindo que tanto os ouvintes quanto os surdos pudessem aproveitar a música do seu jeito particular.

Como podem perceber, as cenas de inclusão são muito poucas. Esse é o reflexo da nossa sociedade. Ainda fazemos muito pouco pela inclusão social. Mas ainda é melhor pouco do que nada.

Nos exemplos, vemos a filha, que habita em dois mundos (o dos surdos e dos ouvintes), tentando conciliá-los ao mostrar que existem meios de todos se sentirem satisfeitos.

Também temos os trabalhadores aprendendo a língua de sinais, mostrando que eles perceberam que precisam se disponibilizar a entender o outro.

Reflexão sobre No Ritmo do Coração: Conclusão

Preciso confessar que, na minha opinião, essa premiação do Oscar foi muito mais social que técnica. Ou seja, No Ritmo do Coração ganhou como melhor filme porque passou uma mensagem que as pessoas precisavam e ainda precisam aprender muito. Porém, isso não é ruim porque o cinema, como arte, é uma forma de expressar algo e esse filme conseguiu fazer isso de tal forma que cativou a academia esse ano.

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Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.