Uma Reflexão sobre Coringa: A Metamorfose do Palhaço Nietzschiano
Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre o filme Coringa, interpretado brilhantemente por Joaquin Phoenix. Vamos ver como esse filme faz uma crítica ácida à moral e aos costumes de nossa sociedade, enquanto mostra a transformação de um indivíduo dessa sociedade. Estaremos apoiados nessa reflexão pelo pensamento de Friedrich Nietzsche, que foi um dos filósofos que mais criticaram a cultura e a moral ocidental. Como devem imaginar, esse texto estará cheio de spoilers, então é melhor ver o filme antes de lê-lo. Vamos lá!
Sobre Coringa
Coringa é um filme a princípio independente da DC. Eu digo “a princípio” porque não será impossível a DC querer de algum jeito criar um universo cinematográfico em torno dele devido ao seu sucesso de público e crítica especializada. Ele conta uma origem inédita para o Coringa, o famoso vilão de Batman nos quadrinhos. Nós acompanhamos todo o filme da perspectiva do palhaço de rua Arthur Fleck (Joaquin Phoenix). Nós vemos o que ele sofreu: os problemas domésticos, no trabalho, na vida amorosa, no convívio social. Descobrimos suas doenças e nos angustiamos com sua tentativa frustrada de se controlar. Temos pena dele até ele começar a se revoltar e reagir ao mundo que lhe atormentava. Quando ele assume sua identidade Coringa, temos medo e pânico do que ele é capaz.
Sobre Nietzsche
Friedrich Nietzsche é um filósofo prussiano (atualmente, Alemanha) que viveu de 1844 a 1900. De família luterana, pensou em ser pastor, mas desistiu. Focou primeiramente seus estudos em Filologia (estudo da linguagem em fontes históricas escritas), se tornando professor catedrático dessa disciplina. Posteriormente, acometido por uma doença que lhe causava debilidade física e mental, deixou a universidade e começou a escrever filosofia. Seus principais temas foram críticas à religião, à moral ocidental, à cultura contemporânea. Ele defendia a ideia de “afirmação da vida” e era crítico a tudo o que pudesse impedir ou atrapalhar o ser humano de ser quem ele verdadeiramente é: criador dos seus próprios valores.
As Três Metamorfoses do Ser Humano
Nietzsche não costumava escrever textos dissertativos. Sua predileção era por metáforas, ironias e aforismos (frases curtas que contém uma afirmação prática).
O filósofo, para explicar as etapas de superação do ser humano, de como ele deveria agir e se comportar para superar os valores da moral ocidental e criar seus próprios valores, se utilizou de metáforas que exemplificavam os momentos pelos quais deveriam passar o ser humano. O primeiro momento, onde todos nascem, é a figura do camelo: animal que carrega um grande peso nas costas, assim como todos nós carregamos o fardo da moral ocidental, sendo obrigados a seguir valores que nos são impostos. O segundo momento é o do leão (animal orgulhoso e empoderado), quando nos rebelamos contra esses valores, questionando-os, e nos entendemos como senhores de nós mesmos. O terceiro e último momento é a figura da criança, que representa a inocência e a criatividade, porque nós re-enxergamos o mundo com olhos puros e escolhemos os significados que damos a ele, criando nossos próprios valores de vida, escolhendo nós mesmos a forma de interpretação da realidade.
Uma Reflexão sobre Coringa: Momento Arthur / Camelo
O primeiro terço do filme vai do seu início até antes de Arthur matar os três empresários no metro. Esse é um trecho longo e cansativo do filme. Muitas pessoas relataram tédio ao ver essa parte. Creio ter sido proposital. A vida de Arthur é horrível. Ele tem problemas psicológicos, sofre de uma doença que o faz gargalhar quando está nervoso. Sua mãe o criou como sendo uma pessoa divertida e que traria felicidade ao mundo, e ele acreditou. Mas não conseguiu fazer isso.
Ele trabalha em uma empresa de aluguel de palhaços, ganhando pouco. Tem o sonho de ser comediante de stand up comedy, mas não leva jeito para o palco e suas piadas são ruins. Vive com a mãe, extremamente debilitada. Faz atendimento com uma assistente social para acompanhar no seu tratamento psicológico, sendo que a assistente não mostra o mínimo de empatia, agindo de forma mecânica com ele. No trabalho é ridicularizado pelo seu patrão e todos os seus colegas de trabalho, exceto o anão. Ele não possui vida social, passado de casa ou trabalho e do trabalho para casa. Na rua, é hostilizado por crianças e mães, exemplos de pessoas que normalmente são boas com todo mundo.
Essa figura depressiva e que nos causa cansaço é o estereótipo da maioria das pessoas que convivemos e provavelmente de nós mesmos. Presos em nossas rotinas diárias, reclamamos que a vida está uma droga, mas não fazemos nada para mudá-la. Reclamamos do sistema, mas não nos preocupamos em lutar contra ele. Nos sentimos vítimas de tudo, como se fossemos coitadinhos maltratados, incompreendidos.
Levamos uma vida enfadonha, preso às nossas responsabilidades sociais, preocupados com o que irão pensar de nós, nos sentindo obrigados a prestar auxílio a quem consideramos depender de nós. Seguimos valores e regras sociais sem protestar. Reclamamos conosco mesmos, imaginamos como seria uma vida perfeita. Mas o medo da mudança, o risco da ousadia nos proíbe de arriscar. Por isso, continuamos aceitando passivamente nosso fardo, levando nas costas o peso de viver nessa sociedade.
Uma Reflexão sobre Coringa: Momento Palhaço / Leão
Arthur recebe uma arma para se proteger de uns agressores que o importunam. No começo relutante, ele acaba aceitando. Surge o momento de usá-la: em um trem praticamente vazio, Arthur (ainda com a fantasia de palhaço) vê três empresários bêbados importunando uma garota. Ele fica nervoso pois não sabe o que fazer e desencadeia sua crise de risos. Os homens trocam a garota pelo palhaço e começam a agredi-lo. No impulso, ele saca a arma e começa a atirar neles. Mata dois ainda dentro do vagão e persegue o terceiro que tenta fugir, mas que acaba morto nas escadas da estação.
Aí começa uma transformação. Arthur ousou pela primeira vez. Passou da passividade a um reacionário. Ele reagiu pela primeira vez às agressões que vivia passando. Ele começa a questionar sua realidade, especialmente quando a notícia toma as mídias e todos começam a falar dele, mas ainda como “um palhaço”. Ele percebe que de fato existe. Mesmo ninguém sabendo que ele é o assassino, ele sabe e isso já basta para o início. Ele é notado, se sente importante.
As pessoas transformaram o caso em um tipo de protesto. O palhaço só estava se defendendo, mas seu ato foi interpretado como crítica ao sistema. Matar empresários bem-sucedidos virou o símbolo do início da resistência do pobre contra a opressão do rico. Claro que isso também irritou os ricos, que começaram a tecer críticas e investigar, tentando reafirmar os valores tradicionais. A punição, a cassada, a crítica, são formas que os poderosos têm de fazer manter a ordem estabelecida. Sem isso, aqueles que estão embaixo podem se sentir à vontade para ousar virar o jogo e isso não pode ser permitido. A ordem social deve continuar favorecendo que está no poder.
Por mais que nosso palhaço tenha começado a acordar para si mesmo e descobrir que ele pode ir além do que pensa poder, as coisas não são fáceis para ele. Ele perde o emprego, passa vergonha na sua tentativa de fazer um show de comédia, tem sua imagem fracassando difundida no show de TV que ele mais ama. Para piorar ainda mais, descobre que “é” filho de Thomas Wayne (Brett Cullen), ex-patrão de mãe e que sempre o negou. Esse é um momento delicado porque flerta entre loucura da mãe e rejeição do pai. Não tem como saber ao certo quem fala a verdade. A única verdade é que a mãe lhe causou maus tratos na infância e isso o revoltou. O Palhaço termina seu momento leão matando a própria mãe, seu último ato de enfrentamento aos valores tradicionais.
“Somos todos palhaços”? Essa é uma questão interessante. Thomas Wayne chama as pessoas pobres, que invejam os ricos de palhaços. Isso inicia uma onda de protestos em Gotham. O povo tomou aquilo como ofensa. E nós? Será que ficamos ofendidos quando aqueles que mais têm posses dizem que a culpa é nossa pois não nos esforçamos direito? Quando dizem que o que fazemos é errado, é ilegal, é de mau gosto simplesmente porque eles possuem seus critérios do que é certo, criaram as leis e estipularam o que é bonito, estão tolhendo nossas vontades e desejos; não deixando sermos que queremos ser.
Nesse momento, quando sob pressão da sociedade, alguns resolvem se revoltar, se rebelar. São os leões. Os valores de uma sociedade são construídos, não nascem prontos. Por isso, existe um relativismo no julgamento de certo e errado. Quem está por baixo, não cria os critérios, apenas os assume. Mas quando esses valores começam a afetá-lo, ele pode reagir e aí começa a revolta interna. Se pararmos para pensar, todos nós já tivemos algum momento leão na vida. Ter um momento leão pode ser até mesmo em um ambiente restrito, limitado ao nosso eu. Aqui, o importante é se revoltar.
Alguns ficam eternamente na fase leão, revoltados, mas sem criar nada, só reclamando e protestando. Alguns se cansam e regridem para a fase camelo, aceitando novamente que o mundo não muda. Outros avançam, passam para a fase criança, quando decidem criar novos valores. E isso aconteceu com nosso Palhaço.
Uma Reflexão sobre Coringa: Momento Coringa / Criança
Após matar sua mãe, surge o Coringa. Sua primeira demonstração de força de vontade foi matar seu colega de trabalho que lhe sacaneou (deu a arma e o entregou à polícia). Sem criar expectativa, sem ter acontecido nada para provocá-lo naquele momento. O Coringa simplesmente agiu, fez o que queria fazer. O seu amigo anão, que acompanhou a cena, ficou assustado e achou que seria o próximo. Mas não era, o Coringa não estava louco, fazendo coisas sem sentindo. Ele estava revalorizando a vida, aquilo que ele fazia tinha sim um sentido, mas um sentido que somente ele, a princípio, entendia.
Depois, temos o seu discurso no show de Murray Franklin (Robert De Niro) e posterior assassinato do comediante, que ele tinha com um pai. O Coringa mostrou quem ele realmente é, mostrou o que lhe agrada, o que lhe faz feliz, o que é uma boa piada. Ele cansou de ser tripudiado pelas demais pessoas, especialmente por aquelas que diziam gostar dele. Ele resolveu agir. Quando ele diz que aquilo que ele faz (matar outras pessoas) é engraçado, o faz rir, ele está dando um novo valor ao conceito de felicidade. Antes, as pessoas riam dele, do seu fracasso. Agora, é ele quem ri.
Podem vir a dizer “Mas o que ele fez é errado! Não pode resolver as coisas assim!”. E eu digo “Por que não?”. Nós somos contra essa reação porque fomos criados em uma cultura que rejeita a violência explícita, mas aceita a violência velada. O Coringa escrachou algo que todos nós gostaríamos de fazer, mas os valores que carregamos não deixam. Ele ligou o “foda-se” para tudo e decidiu viver a vida como ele bem acha que deve ser vivida. Nossa angústia não é pelo “mal” que ele faz, mas sim pela inveja que temos dele…
Devemos entender que o Coringa não está incentivando ninguém a matar ninguém. Essa é apenas a forma que ELE encontrou de revalorizar sua vida. Em nossas vidas, nós devemos encontrar a forma de fazer isso também. Nós sabemos quais são os valores que nos prendem e que gostaríamos de nos libertar. O Coringa aceitou sua nova forma de viver e as consequências disso (a internação). Normalmente, nós não ousamos porque temos medo das consequências, mas isso é fraqueza de espírito. Em vez de termos um espírito livre, temos um espírito aprisionado, temeroso. Devemos julgar se vale mais a pena as consequências de uma vida verdadeira ou a resignação de nossas vidas cotidianas.
Uma Reflexão sobre Coringa: Conclusão / Um ser que dança
No fim dessa reflexão sobre Coringa, quero exaltar a dança para a formação da personagem Coringa. Enquanto vai se descobrindo, se metamorfoseando, o Coringa vai aprimorando sua dança até o ápice que é o seu bailar em cima do carro, no palco da cidade em chamas. Nietzsche cita diversas vezes a dança como símbolo da leveza, da valorização do corpo sobre a razão, da libertação do peso dos valores impostos. A dança nietzschiana é aquela em que o ser se solta, se entrega, cria seus movimentos e se deixa bailar consigo mesmo, curtindo o que ele mesmo está produzindo. Assim foi o Coringa, que se entregou a sua autodescoberta e curtiu cada momento do seu auto-encontro. Ele bailou consigo mesmo a dança da libertação. Que nós também possamos encontrar a nossa dança.
E aí? O que achou do filme Coringa? Gostaria de dar sua opinião e interpretação do filme? Deixa aí nos comentários! Curtiu o filme Coringa e essa reflexão? Compartilha com outras pessoas que viram o filme e também gostaram dele. Quer sugerir outros temas para o blog ou tirar alguma dúvida sobre o pensamento de Nietzsche? Entra em contato comigo pelo formulário.
Até a próxima e tenham uma boa viagem!