Reflexão sobre O Gambito da Rainha: Superdotação e Sexismo

Reflexão sobre O Gambito da Rainha: Superdotação e Sexismo

Olá, marujos! Hoje faremos uma reflexão sobre a minissérie O Gambito da Rainha. Atualmente a minissérie mais vista da Netflix, ela conta a história de uma garota órfã que descobre o xadrez. Sua habilidade é incrível e aos poucos ela vai dominando o cenário americano e mundial em uma época em que as mulheres eram ainda mais menosprezadas do que hoje. Na reflexão, falarei sobre o conceito de superdotação / altas habilidades, que não é algo tão simples e benéfico quanto parece, e do sexismo, fenômeno que infelizmente ainda afeta a nossa sociedade. Não teremos spoilers da série, então podem ler a reflexão mesmo sem a terem visto. Vamos lá!

Sobre O Gambito da Rainha (SEM Spoilers)

O Gambito da Rainha é uma minissérie da Netflix que estreou em 2020. Ela é baseada em um livro de mesmo nome de 1983 do autor Walter Tevis.

Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) é uma criança órfã nos anos 50 nos EUA. No orfanato, ela descobre o xadrez através do zelador Sr. Shaibel (Bill Camp). Ela demonstra desde o começo muita habilidade. Ela decora muito rápido as jogadas e desenvolve a habilidade de visualizar as jogadas em sua mente, prevendo os movimentos a longo prazo do adversário e planejando sua resposta.

É nesse período que ela acaba adquirindo o vício em tranquilizantes (um remédio que davam normalmente para crianças). Os tranquilizantes a ajudam a se concentrar ainda mais.

Os anos passam e Beth é adotada. Agora, ela pode participar dos torneios oficiais de xadrez. A despeito de ser uma mulher em um esporte predominantemente masculino, ela não se intimida e enfrenta todos os seus adversários. Na verdade, sua maior adversária é ela mesma, porque precisará lidar com seu vício em remédios e posterior vício em álcool (fora as demais mudanças e novidades que ocorrem para uma mulher adolescente).

Seu objetivo é apenas um: ser campeã mundial de xadrez.

O nome da série faz referência a uma jogada de xadrez em que aparentemente o jogador sacrifica um peão sendo, conduto, um sacrifício calculado porque o adversário acaba expondo o seu jogo ao capturar essa peça.

A palavra gambito significa artimanha para vencer o adversário. Ao dar nome à série, pode se referir ao fato da personagem principal possuir a capacidade de visualizar todas as jogadas possíveis da partida enquanto ela está acontecendo. Também pode se referir ao fato de que muitas das suas partidas ela jogou sob efeito de tranquilizantes. Por fim, também pode estar relacionado ao fato dela ser uma jovem mulher, fato que deixava os homens enxadristas demasiadamente confiantes, achando que seria uma partida fácil; mas acabavam perdendo vergonhosamente.

Reflexão sobre O Gambito da Rainha: O Drama de ser Superdotado

Fica muito evidente na série que Beth Harmon é superdotada no que tange a sua habilidade no xadrez. Ela ainda criança aprendeu muito rápido as jogadas e estratégias, enquanto muitos adultos que viram a série com certeza não sabem jogar xadrez ou sabem e ainda ficaram confusos com o que acontecia nas partidas (esse é o meu caso).

A definição de superdotação / altas habilidades (esses termos sempre aparecem juntos porque é difícil distinguir quando o caso é uma ou outra coisa) faz referência a uma capacidade extraordinária ou potencial capacidade de pessoas nas seguintes áreas (podendo ser uma ou mais): capacidade intelectual geral (ser muito inteligente de modo geral), aptidão acadêmica específica (ser muito inteligente em uma área de estudo específica), pensamento criativo ou produtivo (ser muito inventivo e habilidoso), capacidade de liderança (muita facilidade em liderar grupos e tarefas, cativando as pessoas), talento especial para artes (ser muito bom em alguma arte) e capacidade psicomotora (ser muito bom em atividades físicas).

É importante destacar que isso ocorre com muitas pessoas, mas nem todas despertam o seu potencial porque não são estimuladas pela família e/ou escola. No caso da série, se não fosse o Sr. Shaibel apresentando o xadrez para Beth, ela nunca saberia que era ótima naquilo. Existem estudos que consideram que de 15% a 30% da população possui superdotação / altas habilidades (como não vemos tantos casos assim, fica evidente que o problema está na falta de estímulo dessas pessoas).

Também é importante de se notar que precisa haver uma habilidade além do normal para ser incluído no grupo dos dos superdotados / altas habilidades. Ou seja, não basta tirar dez na prova depois de estudar muito. Tem que tirar 10 aprendendo a matéria apenas uma vez e usar o tempo livre para querer aprender a matéria dos anos seguintes por conta própria, lendo e entendendo sozinha os livros.

Falo isso porque nos torneios de xadrez da série tinham muitas pessoas boas, que estudavam e se esforçavam para jogar bem. Mas a Beth chegava e arrasava eles com muita facilidade. Além disso, ela não só aprendeu as regras e depois fez “toda a mágica” sozinha. Ela estudou muitos livros de xadrez para aprender todas as jogadas de começo, meio e fim de partida, estudou os adversários e teve apoio dos seus amigos para treinar. A diferença é que seus colegas tinham as mesmas coisas a sua disposição e não conseguiam fazer metade do que ela fazia nas partidas.

Mas nem tudo são flores na vida dessas pessoas superdotadas / com altas habilidades. Muitos deles sofrem grande pressão das pessoas do seu entorno devido às suas características extraordinárias. Essa pressão pode ser tanto por ainda melhores resultados ou atitudes de desprezo por inveja. Na série, ora vemos Beth se cobrando para ganhar porque precisava do dinheiro ora se sentido menosprezada por ser uma mulher jovem que “não deveria está nesse lugar”.

Essa pressão muitas vezes levam os superdotados / com altas habilidades a se refugiarem em vícios como forma de fugir momentaneamente da cobrança / crítica. Fato esse que ocorre com Beth. Por isso, precisamos ter um olhar mais condescendente com essas pessoas. Devemos deixar de lado a inveja que sentimos delas (porque não somos excelentes naquilo que ela é) e apoiá-la para cada vez mais aprimorar suas habilidades.

Devemos ficar felizes quando alguém é muito bom em alguma coisa e não querer obrigá-la a ser ainda melhor ou arranjar desculpas para diminuí-la em outros aspectos. 

Por fim, existem exames para além do teste de QI para avaliar e diagnosticar pessoas com superdotação / altas habilidades. A legislação brasileira reconhece esse fenômeno e garante uma educação especial para essas pessoas, para que suas habilidades sejam estimuladas e bem desenvolvidas. Existem diversos centros de estudo e apoio para pessoas com essas características que tanto vão ajudar no diagnóstico quanto irão promover atividades que desenvolvam as habilidades especiais.

Para aprender mais sobre o assunto e encontrar os locais de apoio para essas pessoas, recomendo o site da ConBraSD (Conselho Brasileiro para Superdotação).

Reflexão sobre O Gambito da Rainha: Qual o Problema em ser Mulher?

Uma das maiores dificuldades pelas quais Beth Harmon passou foi o sexismo, ou seja, a discriminação por causa do seu sexo. E isso não ocorreu só da parte dos homens, mas também por parte das mulheres e da imprensa.

Nos torneios, no começo de sua carreira, Beth era vista com desconfiança: “uma mulher adolescente não pode ser tão boa assim em xadrez”. Com muito jogo de cintura e vários xeque-mates, Beth provou que não era só tão boa, era excelente enxadrista (nome técnico para os jogadores de xadrez). 

Depois que ela se consolidou como uma mestre em xadrez, ela começou a ser considerada uma musa do esporte. Pode não parecer em um primeiro momento, mas essa concepção de musa do esporte, a “cara da beleza” do xadrez e coisas do tipo esconde um certo preconceito. A mulher não é tratada como igual, ela é tratada como excepcional. E, nesse caso, existe veladamente algo do tipo “ela é incrível porque é uma mulher que joga xadrez muito bem”. Isso, no fundo, é uma desconfiança da habilidade das mulheres no esporte. Só faltou falarem “ela joga tão bem quanto homens”, como se o parâmetro adequado fosse o masculino.

Como disse, o sexismo não fica restrito aos homens. As colegas de classe de Beth a desprezavam porque ela gostava de xadrez e não de coisas de meninas. Por causa disso, ela praticamente não teve amigas mulheres, ficando sempre cercada por homens. O que só alimentava o preconceito.

A impressa também não ajudava, criado capas de revista que valorizavam o fato dela ser uma mulher enxadrista e perguntavam como era a sensação, como ela gostava de se vestir, se ela era vaidosa e coisas do tipo. Em uma certa entrevista, Beth ficou revoltada porque em nenhum momento ela foi questionada sobre suas partidas, habilidades e jogadas. Todas as perguntas eram sobre sua vida pessoal e o fato de ser uma mulher em um esporte predominantemente masculino.

Beth é um exemplo para a luta feminista pelos direitos de legítima igualdade (eu digo legítima porque ela está apenas no papel da lei, mas não na prática da sociedade). Excluindo alguns casos de radicalismo, o que as mulheres querem é apenas serem tratadas com igualdade. Elas querem sair na rua e se sentirem tão seguras quanto um homem. Querem praticar um esporte ou exercer uma profissão sem que ninguém fique desconfiando da sua capacidade ou comparando sua habilidade com os homens.

Estranhar ou se surpreender com a presença de uma mulher em um ambiente o qual não teria problema ela estar presente mostra quanto que ainda precisamos evoluir e mudar de postura. Devemos lutar diariamente, homens e mulheres, para que as pessoas sejam reconhecidas pelos seus feitos e não pelo seu sexo.

É claro que, atualmente, ainda vale a pena exaltar algumas representatividades femininas porque elas servem de exemplo para a juventude, para que as meninas saibam que são capazes de ocupar essas posições e os meninos saibam que não existe problema nisso. Oxalá possamos um dia parar de nos preocuparmos em dar destaque para alguém só por causa do seu sexo. Quando isso ocorrer, significa que finalmente aprendemos a tratar as mulheres como iguais.

Reflexão sobre O Gambito da Rainha: Conclusão

Ao final dessa reflexão sobre O Gambito da Rainha, eu espero que você tenha se interessado mais sobre o tema da superdotação / altas habilidades e aprendido a respeitar a apoiar essas pessoas, em vez de invejá-las ou menosprezar suas capacidades. Além disso, espero que tenha conseguido perceber como que o preconceito de gênero está entranhado até hoje em nossa sociedade e que precisamos lutar diariamente para superá-lo.

Aprofundando o Assunto

Caso não tenha visto a série ainda ou queira agora revê-la, segue o link para assistir na Netflix: O Gambito da Rainha.

Como eu disse lá no começo, a série é inspirada em um livro. Caso queira lê-lo, pode adquiri-lo no link: The Queen’s Gambit (só encontrei a versão em inglês).

Caso tenha ficado empolgado e queira aprender a jogar xadrez, recomendo: Xadrez Para Leigos (James Eade) e Aprenda tudo sobre o xadrez (Daniel King).

Se você não tem um tabuleiro de xadrez ainda, segue um link com várias opções: jogo de xadrez.

Se quer aprender mais sobre superdotação / altas habilidades, recomendo: Altas habilidades/superdotação, inteligência e criatividade: Uma visão multidisciplinar (Compiladoras: Angela M.R. Virgolim e Elisabete Castelon Konkiewitz) e Educação de Superdotados: Teoria e Prática (Maria Clara Sodré Gama).

Se ficou mais interessados no debate feminista, recomendo a leitura dos livros: O livro do feminismo (vários autores) e Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios (Maria Amélia de Almeida Teles).

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E aí? O que achou da minissérie O Gambito da Rainha? Deixa nos comentários suas considerações! Conhece algum fã dessa minissérie? Compartilha essa reflexão sobre O Gambito da Rainha com ele! Quer sugerir outros temas nerds para o blog? Entra em contato comigo!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Referências

Conselho Brasileiro para Superdotação. Informativo. Disponível em https://www.conbrasd.org/docs/3_INFO/INFORME_EDUCATIVO.PDF. Acessado em 28 nov. 2020.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.