Imagem-Tempo Descomplicada: O Cinema de Deleuze

Olá, marujos! Hoje, farei uma explicação descomplicada sobre a imagem-tempo, concluindo nossa série de artigos sobre o Cinema segundo Gilles Deleuze. Nesse texto, após breve introdução, abordaremos outros comentários que o filósofo fez a Henri Bergson, o conceito de imagem-tempo, imagem-lembrança e imagem-cristal. Daremos exemplos hipotéticos e reais para ajudar na compreensão dessa teoria. Vamos lá!

Imagem-Tempo Descomplicada: Sobre o Filósofo e Sua Obra

Gilles Deleuze é um filósofo francês contemporâneo que ficou conhecido como um dos principais membros do pós-modernismo e pós-estruturalismo (apesar dele mesmo não se considerar pertencente a esses grupos). Tendo uma carreira acadêmica sólida, foi professor de filosofia em diversas universidades francesas. Enquanto lecionava, publicou diversos livros individualmente, sendo a grande maioria comentários à filósofos (mas que possuíam um toque de originalidade própria). Também publicou alguns livros em parceria com o amigo Félix Guattari.

Deleuze publicou livros e textos (artigos ou palestras transcritas) sobre várias artes e artistas. Dentre esses textos, os que ficaram mais famosos foram os livros Cinema 1: A Imagem-Movimento e Cinema 2: A Imagem-Tempo. Nesses livros, Deleuze se propõe a fazer uma taxonomia (uma classificação) dos tipos de imagens produzidas pelo cinema. Para isso, ele se apropria de conceitos de Henri Bergson e comenta a cinegrafia de vários diretores que ele considerava brilhantes.

Para aproveitar mais esse artigo (que é o último de três textos), recomendo a leitura prévia dos dois primeiros: Filosofia do Cinema Descomplicada: Filosofia da Arte de Gilles Deleuze e Imagem-Movimento Descomplicada: Cinema de Deleuze.

Imagem-Tempo Descomplicada: O Cinema Moderno

Após sua análise daquilo que Deleuze chamou de Cinema Clássico, o filósofo analisará as produções daquilo que ele chamou de Cinema Moderno.

O Cinema Moderno começa após a Segunda Guerra Mundial e teria como característica principal a criação da imagem-tempo (explicada mais a frente).

Os filmes do Cinema Moderno seriam filmes em que a câmera “demora” mais naquilo que está mostrando, apresenta uma sensação de impotência dos personagens e brinca mais com a montagem, criando filmes não lineares e que misturam sons e imagens que distorcem nossa compreensão do tempo.

Imagem-Tempo Descomplicada: Pressupostos Bergsonianos

Tipos de Reconhecimento

Segundo Deleuze, Bergson defende que existem dois tipos de reconhecimento: o “reconhecimento automático ou habitual” e o “reconhecimento atento”.

O reconhecimento automático ou habitual é aquele que fazemos quando reagimos quase que instintivamente diante de um objeto que se apresenta para nós. Por exemplo: diante de uma comida, iremos comê-la; diante de um amigo conhecido, iremos cumprimentá-lo e conversar com ele; diante de uma roupa, iremos pô-la se estivermos nos trocando ou dobrá-la e guardá-la se estivermos em uma situação de cuidar da roupa limpa. O reconhecimento automático ou habitual se dá através da relação “situação-ação” e vamos avançando no movimento conforme a situação vai mudando.

O reconhecimento atento é aquele que fazemos quando nos atemos a um objeto e buscamos compreendê-lo. Por exemplo: quando paramos para compreender a comida que estamos comendo, como sua origem, seus ingredientes, sua proposta, sua textura e gosto; quando paramos para pensar nas várias “camadas” do nosso amigo, como a sua aparência, o que ele gosta e desgosta, quais são suas crenças. O reconhecimento atento se dá através de um constante retorno ao mesmo objeto por diferentes perspectivas, que gera aquilo que chamamos de descrição.

Presentes e Passados

Deleuze analisará os conceitos de tempo em Bergson para explicar os tipos de imagem-tempo que ele perceberá em alguns filmes.

Um primeiro conceito dirá que o presente não existe. Aquilo que chamamos de presente já é um passado contraído. Ou seja, quando pensamos o presente ele já foi, acabou de acabar! Dessa forma, só existiria o passado, que se manifesta em diversos “jorros” ou “lençóis” porque o passado pode se contrair ou estender conforme nossa memória o visita.

Por exemplo, podemos dividir nosso passado não só em “agora a pouco”, “uma hora atrás” e “ontem”, ou em infância, adolescência, juventude e vida adulta; mas também podemos dividi-lo em época em que morava com meus pais e época em que morava sozinho, ou época onde morava no lugar X e época onde morava no lugar Y…. Todas essas “regiões” do passado, por mais que pertençam ao “mesmo” passado não seriam o mesmo passado porque a forma como o visitamos é diferente. É como se criássemos ilhas em nossa memória e cada ilha é uma região de passado, e dependendo da forma como você divide o seu passado, essas ilhas têm um aspecto e tamanho diferentes.

Porém, ainda existe uma forma de dizer que o presente existe: no acontecimento. O acontecimento seriam um momento vertical que cortaria a linha do tempo, deixando de um lado o passado e, no outro, o futuro. Para Bergson, segundo Deleuze, só se pode falar em passado e futuro relacionando-os com outra coisa e essa coisa é o presente. Ou seja, é preciso um presente para que existe passado e futuro.

O acontecimento é um momento único, que se espera, ocorre e acaba, recomeçando o ciclo novamente em um novo acontecimento. Sendo assim, o presente é uma sucessão constante de acontecimentos. Dessa forma, pode-se fazer referência ao conceito de tempo de Santo Agostinho, o qual defendia existir apenas o presente: presente do passado, presente do presente e presente do futuro.  

Imagem-Tempo Descomplicada: A Imagem-Tempo do Cinema

Imagem-Tempo

Segundo Deleuze, a imagem-tempo surge quando os cineastas deixam de fazer montagens racionais, que trazem uma continuidade (e, com isso, mostram indiretamente um tempo decorrido através do movimento); e começam a fazer montagens irracionais, sem uma continuidade necessária (e, com isso, mostram o tempo diretamente).

Por exemplo, uma passagem de tempo no cinema clássico, poderia ser um homem chegando para tomar café na mesa, corta para ele colocando o café na xícara, corta para ele dando um gole, corta para ele mastigando uma torrada e depois corta para ele se levantando e saindo da mesa. A cena durou 1-2 minutos, mas representou um momento que na vida real duraria 5-10 minutos. Tudo precisa ser breve porque mais coisas estão para acontecer no filme.

Por outro lado, uma passagem de tempo no cinema moderno mostraria todos os 5-10 minutos do homem tomando o seu café porque se essa cena existe é porque ela é importante. Nós precisamos ver o homem tomando seu café da manhã porque durante todos os 5-10 minutos “vendo o tempo passar” enquanto passa a cena, vamos ver o que o cineasta quer nos mostrar, vamos pensar com suas imagens.

A imagem-tempo mostra o próprio tempo e explora ao máximo nossa “vidência”, a necessidade de olharmos e contemplarmos o que está acontecendo, seja como um espectador externo ou pelos olhos de um personagem. Por exemplo, em uma viagem de carro de um personagem do ponto A ao ponto B, ficaremos longos minutos contemplando a paisagem pela qual o personagem vai passando, vendo o que ele está vendo, vivenciando o que ele está vivenciando. Mesmo que não vejamos todas as duas horas de viagem de carro, veremos vários minutos de silêncio, dele simplesmente olhando ao seu redor.

Outra característica da imagem-tempo é seu rompimento com a nossa compreensão lógico-racional de passagem do tempo. O Cinema Moderno utiliza-se, por exemplo, de faux raccords (montagens propositais de cenas que evidenciam a falsa relação entre a continuidade cronológica interna do filme com a duração real da película – como um corte abrupto ou sobreposição de imagens e sons) para despertar no espectador um estranhamento.

Outra forma cinematográfica de mostrar uma imagem-tempo é o plano sequência, em que a câmera vai acompanhando a ação do filme enquanto ela vai acontecendo sem fazer cortes, simplesmente seguindo o desenrolar dos personagens. Enquanto que normalmente vemos uma cena se desenrolar mostrando vários ângulos por causa de diferentes cortes de diferentes gravações, um plano sequência é apenas uma câmera que vai seguindo os acontecimentos e mostrando o tempo decorrendo de forma natural. Em um plano sequência, nós sentimos o tempo passando: cada segundo da história passa junto com cada segundo do filme.

Imagem-Lembrança

Deleuze dirá que as imagens-movimento do cinema clássico cumprem bem o papel de nos proporcionar imagens sensório-motoras que mostram o reconhecimento automático ou habitual na prática. Ou seja, os filmes do cinema clássico nos apresentam imagens que servem para contar uma história linear, em que cada plano é um “gancho” para o avanço dos personagens, criando expectativa no espectador.

Por outro lado, as imagens-tempo do cinema moderno cumprirão o papel de proporcionar imagens óticas e sonoras puras, que mostram o reconhecimento atento na prática. Ou seja, os filmes do cinema moderno nos apresentam imagem que servem para histórias não-lineares, em que cada plano é um “circuito” ou “bifurcação” que vai emaranhando ainda mais os personagens, e criando uma sensação de confusão no espectador.

A novidade dos planos presentes nos filmes modernos é o fato de que eles suscitam uma relação que Deleuze chama de “imagem real” e “imagem virtual”. Nesses planos, quando um personagem se depara com alguma coisa, ele não apenas interage com aquilo, tratando-o pelo que aquilo é naquele momento, ele também produz uma “imagem-lembrança” em que o personagem se recorda de algo do passado ligado àquela coisa.

As imagens-lembranças são produzidas nos filmes através do que convencionou-se chamar “flashback”. Flashbacks são cortes feitos no tempo presente do filme para mostrar algo que aconteceu no passado. O flashback citado por Deleuze não é uma simples lembrança (porque, nesse caso, o filme ainda estaria no tempo presente, com o personagem apenas lembrando). O flashback do cinema moderno seria um corte literal no tempo, parando de contar algo do presente para contar algo do passado (que, de alguma forma, tem relação necessária com o enredo geral). Os flashbacks são despertados por algo do presente, mas não pertencem ao presente.

O brilhantismo dos cineastas nesse aspecto estaria em saber encaixar flashbacks de diferentes formas para fazerem sentido ao enredo do filme, mas sem serem apenas cenas descartáveis ou cortes deslocados da linha temporal, sendo, ao contrário, essenciais para o aproveitamento do filme.

Por exemplo, um filme que mostra uma situação de divórcio entre marido e mulher e a cada audiência, quando o juiz e os advogados estão discutindo a distribuição de bens e guarda dos filhos, os flashbacks podem servir para mostrar o que levou aquele casal até esse momento, relacionado cenas de convívio na casa e no sítio com a divisão das propriedades e cenas de convivência dos dois com os filhos com a disputa da guarda das crianças. A tensão do filme está em não sabermos inicialmente porque aquele casal está se separando e para quem “torceremos”, mas os flashbacks vão nos mostrando porque as coisas chegaram até aquele ponto e quem supostamente merece “ganhar” a disputa. Pode, por exemplo, parecer inicialmente que o marido é vilão, mas depois mostrar outro flashback que mostre a esposa como vilã.

Imagem-Cristal

A imagem-cristal é o ápice da imagem-tempo, segundo Deleuze. E a imagem que consegue captar o tempo na sua essência, sem nenhuma dependência do movimento como forma indireta de mostrar o tempo. A imagem-cristal consegue ao mesmo tempo mostrar um presente que passa e um passado que se conserva, invertendo toda a lógica de pensar o tempo através de um movimento.

São duas as formas de manifestação cinematográfica da imagem-cristal: na forma de vários passados de um mesmo passado e na forma de vários presentes ocorrendo em um mesmo presente. Para explicar isso, creio ser melhor usar o próprio exemplo do Deleuze com as minhas palavras:

O filme Cidadão Kane fala de um velho poderoso que morre e diz, como últimas palavras “rosebud”. Daí, passamos o filme acompanhando um repórter que tenta descobrir o que significa essa palavra e, para isso, ele vai falar com várias pessoas que se relacionavam com Kane. A grande “sacada” do filme é que cada pessoa relata um momento diferente da vida de Kane e, de certa forma, um Kane diferente. São diversos pontos de vista diferentes sobre uma mesma pessoa e em momentos diferentes. Desse jeito, temos a existência de vários passados diferentes daquilo que seria apenas um passado.

O filme O ano passado em Marienbad mostra um hotel, em que um homem chega repentinamente para uma mulher dizendo que eles já estiveram juntos e precisam voltar a ficar juntos. Porém, a mulher diz que não, que acabara de conhecê-lo. No meio disso, o marido dessa mulher acompanha o caso. O filme fica fazendo recortes de tempo para frente e para trás e de espaço, repetindo falas em diferentes locais e repetindo cenas com diferentes figurinos. Essa “confusão” proposital nos impede de saber exatamente quem está falando a verdade, quem está mentindo ou se os dois falam a verdade e mentem ao mesmo tempo. Essa estratégia narrativa, combinada com formas muito peculiares de montagem, fotografia e som fazem aparecer três presentes simultâneos, segundo Deleuze: o homem traria em si o presente do passado (porque ele alega que já viveu algo com a mulher), a mulher traria o presente do futuro (porque ela alega que está vivendo aqueles momentos com o homem só agora) e o marido traria o presente do presente (porque ele é quem acompanha o “embate” que está ocorrendo entre o homem e a mulher). Deleuze chama isso de pontas de presente desatualizadas.

Imagem-Tempo Descomplicada: Conclusão

A imagem-tempo é um tipo de imagem mais complexa de ser produzida e também apreciada. A forma como ela mexe com a nossa compreensão normal de tempo contínuo nos provoca estranhamento já que ela nos traz uma experiência de tempo que não é possível de ser vivenciado na realidade. Por isso mesmo, um filme moderno se torna único e especial: porque ele não só mostra algo diferente pela sua câmera, ele também causa em nós uma sensação e uma experiência diferentes da nossa realidade temporal.

E aí? Gostou dessa explicação descomplicada sobre a Imagem-Tempo? Compartilha! Quer um artigo descomplicado sobre outra teoria do cinema? Entra em contato comigo dizendo qual gostaria de ver aqui! Alguma parte ficou confusa ou gostaria de complementar a explicação? Comenta!

Até a próxima e tenham uma boa viagem!

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Imagem-Tempo Descomplicada: Referências

BENITES, Matheus. Gilles Deleuze: Cinema 2 – A imagem-tempo. In: YouTube. Acessado em 10 jun. 2024.

DELUZE, Gilles. A imagem-tempo – cinema 2. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense, 2005.

GOUVEIA, Alice. A imagem-tempo. In: Centro Internacional de Estudos Peirceanos. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2014. Acessado em 08 jul. de 2024.

OpenAI. ChatGPT 3.5. Acessado em 08 jul. 2024.

VIEGAS, Susana. Gilles Deleuze. In: Film and Philosophy: Mapping an Encounter. Lisboa: Universidade NOVA de Lisboa. Acessado em 15 jun. 2024.

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Professor de filosofia desde 2014 e nerd desde sempre. Tem como objetivo pessoal mostrar às pessoas que filosofia é importante e não é uma coisa chata. Gosta de falar dos temas filosóficos de forma descontraída e atual, fazendo muitas referências ao universo nerd.