Olá, marujos! Hoje, faremos uma explicação descomplicada sobre o conceito de imagem-movimento de Deleuze. Esse é o segundo de três artigos sobre o cinema segundo esse filósofo, em que apresentaremos os pressupostos bergsonianos usados por Deleuze e os conceitos que ele elaborou no seu primeiro livro sobre o tema: imagem-movimento, imagem-percepção, imagem-ação e imagem-afecção. Vamos lá!
Sobre o Filósofo e a Obra
Gilles Deleuze é um filósofo francês contemporâneo, conhecido como pertencente ao movimento pós-modernista e pós-estruturalista.
Deleuze se interessou pelo cinema porque via essa arte como algo único, uma forma de fazer pensar através de imagens que conseguem despertar afetos e sensações nos espectadores.
Ele escreveu dois livros sobre o tema: Cinema 1: a imagem-movimento e Cinema 2: a imagem-tempo. Também deu algumas palestras e cursos sobre o tema que foram preservadas.
Para conhecer a definição de Cinema para Deleuze, leia o artigo: Filosofia do Cinema Descomplicada: Filosofia da Arte de Gilles Deleuze.
Imagem-Movimento Descomplicada: O Cinema Clássico
Deleuze analisará, em um primeiro momento, aquilo que convencionou-se chamar “cinema clássico”, que iria desde sua origem até o período da Segunda Guerra Mundial.
O cinema clássico é conhecido por ter histórias lineares, com começo, meio e fim. A montagem existe para contar uma história.
Esse período possui como destaque aquilo que Deleuze chama de imagem-movimento.
Imagem-Movimento Descomplicada: Pressupostos Bergsonianos
A base filosófica para Deleuze desenvolver seu conceito de imagem-movimento é na teoria do filósofo Henri Bergson sobre os conceitos de tempo, movimento e imagem.
Sobre Tempo e Movimento
Para Bergson, o movimento pertence à dimensão do tempo, e não do espaço. Para ele, o movimento é uma mudança qualitativa, e não quantitativa. Sendo assim, o movimento não é divisível. Vamos explicar melhor isso:
Normalmente, nós dizemos que algo se movimentou quando percebemos que esse algo saiu do ponto A e foi até o ponto B. Por exemplo, o gato se movimentou porque foi da sala até o quarto. Pensando dessa forma, nós colocamos o movimento no campo do espaço porque pensamos em distância percorrida (por exemplo, o gato andou dois metros). E podemos “dividir” esse movimento dizendo que, na metade dessa caminhada, o gato passou pelo corredor.
Porém, Bergson discordará dessa compreensão de movimento. Para ele, isso não é movimento. Movimento é mudança. Não só mudança de posição, mas mudança de estado. Quando o gato anda, ele não simplesmente desmaterializa da sala e se materializa no quarto, ele percorre um tempo, e durante esse tempo, o gato vai mudando quem ele é e o ambiente ao seu redor vai mudando também.
Vamos com outro exemplo: pense o movimento de rotação da Terra em torno do Sol. A Terra percorreu uma distância? Sim. Mas nos marca muito mais o tempo, que é um ano! Quando pensamos no movimento da Terra em torno do Sol, pensamos nesse um ano que passou e nas várias mudanças que ocorreram não só na Terra em si, mas em tudo que habita essa Terra.
Sendo assim, para o filósofo, precisamos pensar o movimento como uma mudança temporal. Quando algo se movimenta, ela muda o todo (de si e do seu redor). Por isso é uma mudança qualitativa.
Sobre Imagem
Para Henri Bergson, o conceito de imagem é um “meio-termo” entre a “coisa” e a sua “representação”.
Vamos manter o exemplo do gato: a coisa em si é o gato. A representação é a forma como eu represento aquele gato na minha mente. A imagem do gato é como esse gato aparece para o mundo.
Tentando melhorar o exemplo: o gato em si é como ele é. A representação do gato é como eu o interpreto, como eu o vejo. Já a imagem do gato é como ele age e se comporta no dia-a-dia.
Sendo assim, podemos dizer que a “coisa” do gato cinco anos, raça misturada e é agressivo. A “representação” dele, que é a forma como eu represento esse gato em minha mente, é de um gato de uns cinco anos, persa e calmo porque foi isso que eu compreendi dele quando o vi em um dado instante. Já a imagem dele, que é como ele demonstra ser na maior parte do seu tempo, é de um gato de uns cinco anos, persa e agitado.
Como no exemplo acima, precisa ficar claro que em alguns aspectos da coisa, representação e imagem irão coincidir (como a idade do gato) e outras irão diferir (como a personalidade do gato).
Para Bergson, toda a realidade é constituída de imagens. Tudo é imagem. O universo é um conjunto de imagens interagindo umas com outras imagens. É desse jeito porque não tem como acessarmos a coisa em si, nem nossa nem dos outros seres e a representação também não diz muito o que é o outro ser, já que é subjetividade nossa.
A Imagem-Movimento
Juntando essas ideias, Begson criará o conceito de imagem-movimento para dizer como podemos captar a realidade de uma forma dinâmica, fluida e contínua. Ou seja, nós capturamos imagens-movimentos quando registramos a realidade através de “blocos”, de conjuntos de cenas que presenciamos, um recorte de tempo daquilo que vivenciamos durante nossa vida.
Imagem-Movimento Descomplicada: A Imagem-Movimento do Cinema
A imagem-movimento no cinema aparece no plano, como um “corte móvel” do tempo.
O plano é aquela “tomada”, onde o diretor diz “Ação!”, aí a cena começa a ser gravada e quando se encerra o diretor diz “Corta!”. No plano, enquanto as coisas vão acontecendo no ambiente e entre os atores, o diretor vai escolhendo o que captar com a câmera, o que ela está vendo (e, consequentemente, o que nós veremos).
A imagem-movimento surge no cinema, segundo Deleuze, quando duas coisas começam a acontecer:
1. A câmera se torna móvel, ou seja, a câmera que grava o filme não fica mais parada, estática, ela se movimenta enquanto está gravando, possibilitando a captação de imagens que se movem enquanto ela mesma se move;
2. A montagem, ou seja, a forma como o diretor, depois de gravar todas as cenas, escolhe colocá-las lado a lado para compor o filme. Também é considerado montagem as escolhas que o diretor faz entre o plano geral (quando mostra de longe), o plano médio (quando mostra de perto) e o primeiro plano (quando dá um close) dentro de uma mesma cena (normalmente, o diretor grava uma cena com várias câmeras ou várias vezes a mesma cena de diferentes ângulos e focos para depois fazer essas escolhas na hora da montagem).
A imagem-movimento se tornou a forma clássica de fazer cinema porque os diretores conseguiam captar as imagens das várias cenas de diferentes formas e ângulos. Depois, através de um trabalho preciso de combinação dessas imagens em sequência, conseguia contar uma história com começo, meio e fim, fazendo uma narrativa.
É muito interessante pensar que um filme é gravado em diferentes dias, e uma mesma cena é grava diversas vezes. Depois, o diretor pega as centenas de horas de gravação e constrói um filme de duas horas que pode contar uma história que se passa em trinta minutos ou trinta anos.
A imagem cinematográfica desse tipo é chamada de imagem-movimento porque existe um movimento qualitativo do ambiente e dos personagens que nos passa essa ideia de tempo decorrido. É através daquilo que vemos ocorrendo em cena que vamos percebendo o desenrolar do tempo.
Um filme pode ficar contando uma história de dois casais simultaneamente, “cortando” de um para outro. Um filme pode contar uma aventura que ocorre durante umas férias de verão sem precisar mostrar tudo o que acontece em cada dia de férias, mas dando ao espectador a noção que as férias estão passando e que os personagens e dias estão mudando. Um filme pode contar o que se passa na cabeça de uma pessoa enquanto ela está esperando para ser chamada em uma fila de banco e esse filme durar duas horas enquanto que o tempo de fila foi de trinta minutos porque, em nossa cabeça, o tempo parece passar mais devagar e o filme busca refletir isso.
A imagem-movimento do cinema é algo único porque é o “movimento do falso”, uma escolha artificial e uma visão única da realidade. Movimento do falso porque aquela situação nunca ocorrer na vida real, ela é simulada. É escolha artificial porque foi o diretor do filme quem escolheu aquilo que estamos vendo e não a gente. E é uma visão única porque ele pode capturar imagens que só uma câmera consegue nos mostrar, sendo impossível (ou praticamente impossíveis para o olho humano), como, por exemplo, um plano geral das montanhas (que só poderíamos ver se estivéssemos voando) ou um close no olhar de alguém (que só poderíamos ver se fossemos excessivamente descarados e abusados).
Imagem-Movimento Descomplicada: Tipos de Imagem-Movimento
Deleuze dirá que existem três tipos de imagem-movimento que estão associadas aos três tipos de plano que existem.
A imagem-percepção é associada ao plano geral. A imagem-ação é associada ao plano médio. E a imagem-afecção é associada ao primeiro plano.
A Imagem-Percepção
A imagem-percepção é a nossa percepção do espaço, do conjunto, o panorama de onde estamos ou o ambiente em que nos encontramos. A imagem-percepção serve para nos situar. Por isso que ela sempre é plano geral, aberto. Ela serve como guia para nossos olhos entenderem o que está para acontecer. É preciso uma ambientação prévia para compreendermos qualquer ação.
Uma imagem-percepção pode servir para mostrar a passagem do tempo quando vemos em uma paisagem o sol nascendo ou o sol se pondo. Quando vemos ao longe um carro se movendo na estrada ou uma ponte, compreendemos que alguém se deslocou de um lugar para outro. Uma imagem panorâmica de pontos turísticos nos situa na cidade em que o filme se passa. Uma imagem da fachada de um prédio ou de uma casa nos mostra onde os personagens estão naquele momento.
É a imagem-percepção que normalmente nos mostra as longas passagens de tempo, quando vemos grandes mudanças no cenário ou no ambiente.
A Imagem-Ação
A imagem-ação é a nossa compreensão da ação dos personagens diante de uma situação que se coloca diante deles. Essa situação pode ser provocada pelo meio ou por outro personagem. Deleuze diz que normalmente esse movimento se dá através da fórmula S-A-S (Situação, Ação, Situação) ou S-A-S’ (Situação, Ação, Situação Transformada).
Ação não é a mesma coisa que “tiro, porrada e bomba” em filmes de ação. Ação é qualquer movimento transformador naquele espaço em que a cena se passa. Um diálogo entre dois personagens é uma ação porque está ocorrendo um movimento qualitativo entre essas pessoas, que sairão diferentes após essa troca de falas. Uma cena em que alguém pega algo para comer na geladeira a noite também é uma ação porque o ambiente se modificou (luz acendeu, a geladeira “perdeu” a comida que foi tirada de lá, a comida “deixou de existir” porque foi comida, o personagem agora está alimentado etc.).
Nessas cenas, também vemos o tempo passando, mas normalmente o tempo passado é equivalente ao tempo real da cena. Se alguém começa a comer uma maçã e a câmera fica parada nessa cena, o tempo real do personagem comendo a maçã é o tempo da cena. Caso o filme corte para outra cena, vamos acompanhar o tempo de desenvolvimento dessa outra cena. E assim sucessivamente.
A Imagem-Afecção
A imagem-afecção é o modo como vemos o personagem “recebendo” o impacto externo e se modificando internamente. Vemos o personagem sendo afetado por algo que viu ou ouviu e como ele está processando aquela informação ou sentimento.
A imagem-afecção se dá no primeiro plano, no close do rosto do personagem, onde vemos suas expressões faciais e compreendemos o que o personagem está sentindo e pensando dentro de sua cabeça. Uma boa imagem-afecção depende de um bom ator e de uma boa direção para conseguir expressar tudo o que se precisa em um olhar, gesto ou movimento do rosto.
Apesar de privilegiar o rosto, uma imagem-afecção também pode ser um close em uma outra parte do corpo, como mãos, por exemplo. Uma cena que mostre alguém coçando freneticamente suas mãos ou se arranhando serve para demonstrar o nervosismo ou desconforto daquele personagem.
A imagem-afecção também mostra o movimento porque ela mostra uma mudança qualitativa daquele personagem, que está passando por uma transformação interior, que está lidando com aquilo que acabou de receber e precisa tomar uma atitude.
Uma imagem-afecção pode “parar o tempo” do filme, porque ela pode ficar minutos mostrando um close em câmera lenta sendo que no tempo real do filme aquela expressão durou milésimos de segundo.
Exemplo
Nas imagens que estão no topo desse artigo, retiradas do filme Rocky, o Lutador, você verá uma imagem-percepção que mostra o ambiente em que se passa a cena (o ringue), uma imagem-ação que mostra a situação e a ação dos personagens (luta) e uma imagem-afecção que mostra como um personagem sente aquilo que está vendo (a preocupação da mulher).
Imagem-Movimento Descomplicada: Conclusão
Deleuze considera os cineastas pensadores que expõem seus pensamentos por imagens. No caso do cinema clássico, eles fazem isso através de imagens-movimento. Um filme é uma montagem feita utilizando diversas tomadas gravadas, usando diferentes ângulos de câmera e tipos de planos. Através dessa combinação, surge uma história, que mostra um movimento não só temporal e exterior, mas também interior e qualitativo, em que coisas mudam, sejam os personagens ou o cenário. Nada acaba igual após um filme. Nem mesmo o espectador.
E aí? Gostou dessa explicação descomplicada sobre a Imagem-Movimento? Compartilha! Quer um artigo descomplicado sobre outra teoria do cinema? Entra em contato comigo dizendo qual gostaria de ver aqui! Alguma parte ficou confusa ou gostaria de complementar a explicação? Comenta!
Até a próxima e tenham uma boa viagem!
———————————————————————————————
APOIE NOSSAS VIAGENS!
Faça um PIX de APENAS R$0,10 (dez centavos)
Chave PIX: contato@naudosloucos.com.br
———————————————————————————————
Imagem-Movimento Descomplicada: Referências
ALVES, Francisco Fabrício da Cunha. A imagem-movimento deleuzeana e seus desdobramentos. In: Polymatheia – Revista de Filosofia. Fortaleza: Universidade Estadual do Ceará, v. 14 n. 25 (2021): Jul./Dez. 2021.
BENITES, Matheus. Gilles Deleuze: Cinema 1 – A imagem-movimento. In: YouTube. Acessado em 10 jun. 2024.
FIALHO, Ana Luísa Coutinho. O Cinema em Gilles Deleuze: Apontamentos sobre a Imagem-movimento. In: Humanidades em diálogo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 10, 41-55.
OLIVEIRA, Leonardo Araújo Oliveira. Por uma Libertação do Tempo: Notas sobre a “Filosofia do Cinema” de Gilles Deleuze. In: Pólemos. Brasília: Universidade de Brasília, vol. 2, n. 3, Julho 2013.
OpenAI. ChatGPT 3.5. Acessado em 29 jun. 2024.